Capítulo 3
O ENCONTRO
O avião que trazia Iosef e mais de duas mil pessoas, além de produtos comerciais, desceu na cidade de São Paulo por volta de nove horas da manhã terrestre. Iosef saiu da estação, sendo conduzido através das esteiras flutuantes até o táxi aéreo que o levou ao hotel, quando, enfim, saiu do táxi aéreo e pisou no solo da Terra pela primeira vez na vida, Iosef sentiu a força da gravidade terrestre e compreendeu porque os médicos recomendavam aos visitantes um dia pelo menos de adaptação à Terra. Os músculos da perna, acostumados à gravidade marciana, sentiram o novo peso do seu corpo e penaram para caminhar alguns metros até a recepção. Mesmo a rápida adaptação à situação que o cerétalo proporcionava, buscando regular o gasto energético das células, não era suficiente para atenuar o esforço e, pela primeira vez na vida, Iosef sentiu cansaço físico e palpitações no coração.
Ao chegar na recepção, Iosef ofegava, foi identificado pela máquina de hospedagem e um criado robô, de aspecto simples, uma máquina quadrada, sobre rodas com espaço para que a maleta pessoal fosse colocada, surgiu debaixo do balcão para levá-lo ao seu quarto. Iosef o acompanhou, entrou no quarto e se deitou para recuperar o fôlego. O criado colocou a pasta sobre uma mesa e retirou-se. Após alguns minutos, sentindo-se melhor, Iosef arriscou caminhar até a janela e viu a imponência daquela enorme cidade, em que prédios altíssimos ainda conviviam com casas térreas, provavelmente de alguns séculos, viu também que as pessoas caminhavam pelas ruas e que havia poucos carros aéreos, tão comuns em Marte, na Terra, usava-se muito os transportes coletivos. Lembrou que a gravidade marciana favorecia o transporte aéreo, além do mais, Marte não possuía cidades tão grandes.
Iosef voltou a deitar-se na cama que se adaptou ao seu tamanho e peso, ele pensou em assistir um programa qualquer e uma tela acendeu-se na parede defronte à cama, mostrando uma reportagem sobre a abertura de uma cápsula do tempo, que fora enterrada em 01 de janeiro de 2000 em New York. Os apresentadores riam dos objetos deixados para que os humanos do futuro soubessem como era o ano 2000. Havia coisas muito antigas que nem era possível mais usar como telefones celulares, discos a laser, livros, fotografias, filmes digitais, Iosef também se divertiu com a curiosidade do programa, depois disso, ficou pensando em como encontrar Tomás Magril naquela cidade. Programou o cerétalo para que ele pesquisasse junto ao computador central da cidade sobre as informações a respeito dos presos, dias de visita, formas legais de se agendar uma data, Iosef não poderia ficar mais que um mês na Terra, período em que haveria de retornar para Marte e seu trabalho. A pesquisa junto ao computador central iria demorar e ele decidiu dormir um pouco.
Enquanto ainda descansava, Iosef recebeu uma ligação e a parede acendeu-se, mostrando o recepcionista do hotel avisando-o que a senhora Miteldon gostaria de falar com ele, Iosef estranhou muito, pois não conhecia aquela mulher. Mesmo assim, autorizou sua subida e, enquanto ela vinha, não mantiveram contato pelo cerétalo, Iosef gostaria de conversar pessoalmente.
A campainha do quarto soou e ele autorizou a abertura da porta, por onde entrou uma bela mulher de estatura média, surpreendendo-o tanto pela sua beleza quanto pela aparência jovem, talvez menos de cinqüenta anos, Iosef iniciou a conversa:
_ Boa tarde, senhora...
_ Rena Miteldon. Aqui na Terra, usamos bom dia neste horário – ela sorriu agradavelmente – Muito prazer! – e estendeu a mão para cumprimentá-lo.
_ Prazer em conhecê-la, sou Iosef Biron. A que devo sua visita?
_ Vim a pedido daquele que você procura.
_ De Tomás?
_ Por favor, devo evitar citar nomes, você sabe quem é.
_ Que mistério. Onde ele está?
_ Está aguardando-o. Eu o levarei até ele.
_ Como você sabe quem eu procuro?
_ Nós sabemos que você vinha para cá, e, através de suas pesquisas ao computador central, pudemos localizá-lo rapidamente. Agora, venha comigo e traga os papéis que ele lhe pediu.
Aquela moça pareceu saber muito a respeito do que Iosef fazia na Terra, apesar dela não lhe permitir contato pelo cerétalo, ele resolveu acompanhá-la, era movido pela curiosidade e pelo interesse em tão bela mulher. Outra coisa em que os terráqueos eram diferentes dos marcianos além da diversidade física muito maior: eles não permitiam acesso fácil ao cerétalo, eram resistentes a uma integração, portanto, a sensação de desconforto para um marciano, acostumado à banalidade da invasão pelo cerétalo, era extremamente grande. Talvez porque ainda não estivesse acostumado às estranhezas dos terrestres.
Caminharam em silêncio pelas ruas de São Paulo, apenas três quadras, pelas quais Iosef admirou a antiqüíssima arquitetura de uma cidade de um mil e quinhentos anos, misturada com prédios atuais com mais de trezentos andares e casas térreas em ruínas no meio daquelas construções. Viu dezenas de tipos estranhos de pessoas, muito mais diversas do que em Marte. Entraram em uma estação de metrô e tomaram um trem até a estação Luz, de onde tomaram o trem de alta velocidade na direção do Rio de Janeiro, que partiu e logo atingiu a velocidade de trezentos quilômetros por hora, pararam quinze minutos depois. Desceram numa estação chamada Santo Antônio, Iosef achava coisa de terráqueo ainda possuir lugares com nomes de santos, pois pensava que não existisse mais religião. Durante todo o trajeto, Rena ficou em silêncio, ao descer na estação, ela avisou:
_ Agora nós vamos caminhar um pouco.
_ Caminhar aqui na Terra é muito cansativo, talvez eu não suporte.
_ Calma, são apenas alguns metros.
Realmente, após cinco minutos, chegaram a um prédio enorme com mais de duzentos andares, rodeado de vagas para carros aéreos, parecia um prédio residencial, tomaram um elevador até o ducentésimo oitavo andar, Iosef se perguntava porque não utilizavam um carro aéreo até aquele andar, Rena saiu do elevador e o guiou até o apartamento dois mil e vinte e seis. Ela encostou a mão no sensor que a reconheceu e permitiu a entrada. Um senhor idoso, sentado numa poltrona, olhava o panorama da grande janela envidraçada no pequeno apartamento.
_ Ele está aqui! - anunciou Rena para o homem, que se virou e lhe agradeceu, dirigindo-se para Iosef.
_ Como vai, jovem marciano!
_ Bem!
_ Perdoe Rena por não me apresentar, há muito tempo espero por sua visita, eu sou Tomás Magril!
_ Tomás Magril, meu pai biológico!
Iosef olhou com curiosidade a cor escura daquele homem, olhos e cabelos pretos, também, compreendendo de onde vinha a cor dos seus olhos e de seus cabelos. Mas nenhum sentimento maior havia além dessa curiosidade, o conceito de pai havia sido perdido depois que a revolução genética permitiu a criação de humanos sem a necessidade de uma mãe e pai tradicionais, a população era um controle governamental que fazia nascer quantas crianças fossem necessárias por ano.
_ Sim, filho, se é que posso chamá-lo assim, Rena é minha atual companheira.
_ Você não estava preso, incomunicável?
_ Estive por muitos anos, mas saí após vencer a minha pena. Desde então, tenho morado aqui na Terra, adaptei-me novamente ao meu planeta natal.
_ E por que entrava tanto em contato comigo pelo cerétalo?
_ Por que era mais fácil falar com você sendo jovem e aberto, além disso, eu tinha curiosidade de conhecer meu filho.
_ E por que aquelas mensagens em código? Qual a finalidade disso? E por que me trouxe até a Terra?
_ Quantas perguntas! Vou responder a todas. A história é muito longa, vamos, sente-se, vou começar a história, não vou tomar muito tempo seu. Antes, venha aqui e veja esta paisagem.
Iosef se aproximou da janela e viu prédios enormes a perder de vista, um céu azul intenso e algumas nuvens, bem ao fundo, uma cadeia de montanhas, cuja cor, parecia um azul profundo, escuro e forte, misturado a muito verde, provavelmente, florestas, pensou.
_ Veja, Iosef, há coisas que só existem na Terra. Este céu azul, o pôr-do-sol, o clima inconstante e imprevisível... uma diversidade inacreditável de paisagens. Todas as paisagens que encontramos no sistema solar parecem estar reproduzidas em menor escala aqui na Terra. Sejam os desertos marcianos, os vulcões de Júpiter, as geleiras de Europa.
_ Percebi o céu azul, muito diferente de Marte.
_ Eu gostaria de contar-lhe muito mais, toda a história que há, e muito mais coisas, mas, para isto, seria preciso que você desligasse o seu cerétalo. Não quero contar-lhe coisas que podem ser investigadas facilmente pelo governo central.
_ Como? Desligá-lo? Isto é impossível!
_ Não é impossível. Ele é uma máquina como outra qualquer! Todas as máquinas podem ser desligadas.
Iosef estava incrédulo, o cerétalo era uma parte integrante do seu raciocínio, tudo o que ele fazia, sua vida, suas reações, tudo passava por aquele bio-computador minúsculo, dizer que ele poderia ser desligado era impensável, nem em conjecturas malucas feitas com seus colegas, esta idéia surgira.
_ E como se faz isso? – perguntou temeroso da resposta.
_ Você trouxe consigo os papéis manuscritos que lhe pedi?
_ Sim. Estão aqui – Iosef estendeu-os a Tomás, mas este não os pegou.
_ Você sabe ler um manuscrito? Conhece letras manuais? Se não conhece, pesquise em seu cerétalo, há um arquivo sobre elas, estude-o e leia o que escrevi, acredito que alguns minutos serão suficientes para isso... Rena aprendeu rapidamente, apenas com indicações que fiz, depois que você descobrir a primeira vez, verá que é fácil.
Iosef se concentrou, sim, havia arquivos sobre letras manuais e milhões de outras coisas, ele olhava o que Tomás havia escrito, comparava, estudava. Nunca antes havia se preocupado com um manuscrito e nem imaginava que houvesse alguma coisa semelhante nos arquivos. O assunto era muito antigo. Ninguém usava mais qualquer coisa escrita à mão. Aliás, ninguém mais usava qualquer coisa escrita. Iosef não compreendia porque Tomás fez aquelas anotações, mas, pelo menos, passou a entendê-las, viu que era uma fórmula matemática extremamente complexa. O que lhe trouxe a necessidade de compreendê-las através de novas pesquisas mentais. As dúvidas que surgiram, iam sendo esclarecidas por Tomás. Todo o processo havia demorado mais de duas horas, Tomás e Rena participaram pacientemente daquele tempo, até que Iosef comunicou:
_ Sim, agora compreendo esta fórmula, mas não a sua finalidade...
_ Você deve inseri-la como um arquivo em seu cerétalo, é um processo complicado, você está disposto a arriscar?
Iosef sentiu estranheza, não conhecia aquela sensação nova que lhe vinha, era um medo diferente do que sentira em Marte, quando uma vez havia quebrado o seu carro num deserto distante, em que a comunicação era difícil. Desligar o cerétalo era loucura, talvez fosse impossível, pela primeira vez na vida começou a sentir-se com um medo verdadeiro, algo que lhe tomava e o assustava, afinal, era a primeira vez que estava na Terra, mal conhecia Tomás e Rena, era um momento difícil pelo qual nunca havia passado, mas sentiu que era importante seguir em frente.
_ Sim, não fiz esta longa viagem para chegar aqui e desistir de descobrir este mistério! Como eu insiro isto? Pensei que fosse impossível desligar o cerétalo...
_ Calma, não é tão fácil, há um arquivo oculto chamado YK2, encontre-o, para abri-lo é preciso que você se concentre em arquivos do formato .yx no módulo SOOWAY.
Iosef se concentrou. Depois de algum tempo, conseguiu.
_ Encontrei.
_ Ótimo! Concentre-se, abra qualquer programa de cálculo matemático, construa nele a minha fórmula, grave-a e depois a execute no módulo de INÍCIO.
Iosef executou aquela formula, inserindo, pelo pensamento, os programas e seus arquivos, de repente, olhou fixo para Tomás e falou:
_ O que aconteceu? Não estou mais acessando o cerétalo! É como se ele não estivesse mais no meu cérebro!
Iosef foi tomado por um medo desconhecido! Não podia acessar o seu suporte para tudo o que fazia. Alguns instantes bastaram para que ele sentisse a diferença em seu físico apenas por estar na Terra, o seu corpo começou a reagir, afinal, ele era um marciano, e o cerétalo o fazia adaptar-se rapidamente à Terra. Começou sentindo uma falta de ar, ligeira tontura, a sua visão turvou. Desmaiou.
Ao abrir os olhos novamente, estava deitado em uma cama. Rena estava ao seu lado.
_ O que aconteceu comigo?
_ Você desmaiou. É uma reação normal. Seu corpo não suportou a gravidade e a atmosfera terrestres sem o apoio do cerétalo.
_ Que dor de cabeça!
Logo, Tomás entrou no quarto.
_ Que maravilha, você conseguiu! Agora irá experimentar a sensação de pensar sozinho, de usar somente a sua cabeça para tudo o que fizer, e aí, do que você consegue se lembrar?
_ Lembrar? Ora, é tão fácil lembrar-se de qualquer coisa! – realmente, o mais difícil era lembrar, recuperar a memória, encontrar alguma informação.
_ É, então me diga, qual o número do ônibus espacial que o trouxe?
Iosef fez instintavemente a concentração para descobrir no cerétalo o número do ônibus, mas não podia acessá-lo mais, não podia lembrar-se do número e isso o deixou com uma estranha sensação de incapacidade que o frustrou e o assustou, e se nunca mais pudesse acessar o próprio cerétalo? Como poderia viver? O que seria capaz de fazer se tudo o que sabia estava lá gravado?
Tomás se divertiu com a expressão de espanto do filho e o acalmou.
_ Calma rapaz, eu sei que o número é 4099, porque consigo acessar o seu cerétalo e li o número arquivado nos arquivos óticos, mas você não consegue ler porque desligou o cerétalo, como está se sentindo?
_ Extremamente estranho. O que sinto agora eu nunca pude sentir antes, é terrível, é...
_ Medo, pavor, horror – completou Tomás – pela primeira vez na vida você deve estar sentindo medo. Veja suas mãos, estão trêmulas!
_ Então, se este é o sentimento do medo! Eu tenho muito medo de não conseguir ler o meu cerétalo novamente, tenho medo de perder a minha vida como ela é!
_ Calma, é fácil religar-se, basta pensar no YK2, lembre-se da primeira linha da fórmula.
_ Mas eu não me lembro dela.
_ Pegue o papel e leia novamente.
Iosef pegou o papel e o leu.
_ Concentre-se na primeira linha.
Ele o fez e o programa abriu o arquivo YK2, em que esteve parado o tempo todo, aguardando a ordem, a partir daí, ele retomou todo o arquivo do cerétalo. Iosef aliviou-se.
_ É verdade, ele retornou. Consigo lembrar-me de tudo e acessar todos os arquivos novamente.
_ De tudo mesmo? Tem certeza? Tente lembrar-se do que nós conversamos há alguns segundos atrás.
De fato, Iosef tentava encontrar a memória daquela conversa dentro do cerétalo e não a encontrava.
_ Inacreditável! Onde está aquela conversa? Sobre o que conversamos? Era algo que me causou estranheza...
_ Calma Iosef, com o tempo você vai aprender a usar o seu cérebro normal em separado do cerétalo, pode não parecer, mas o cérebro humano é capaz de prodígios imensos, o melhor é que você pode aprender a não armazenar informações no cerétalo, apenas no cérebro, e voltará a ser um homem como os que existiam até o século XXIII, antes da obrigação, a todos os humanos, de usar este fantástico cerétalo.
Iosef ainda estranhava, para ele, era impossível um ser humano viver sem o cerétalo, pois era este pequeno equipamento, derivado dos computadores do século vinte, que permitia ao ser humano chegar até quase trezentos anos de vida. Ele regulava a energia vital e controlava a saúde de cada um, confrontando as informações genéticas das células que poderiam adoecer, potencializava o trabalho de defesa humano, informando imediatamente o aparecimento de qualquer vírus de gripe, a única doença que ainda não fora banida da humanidade. Além do mais, ele tinha capacidade para armazenar todas as informações sobre a vida do indivíduo e sobre a humanidade, por que desligá-lo?
Tomás Magril chamou Iosef até uma sala pequena, ambos sentaram-se em poltronas confortáveis. De um bule, ele serviu um pouco de café quente e fresco ao filho, costume muito comum na Terra.
_ Você bebe café, Iosef?
_ Sim, não é comum em Marte, mas o seu gosto amargo é satisfatório.
_ Ninguém deveria saber porque é importante desligar o cerétalo, pelo menos, é o que as corporações e o governo desejam.
_ Como assim?
_ As corporações são conglomerados empresariais gigantescos que comandam toda a nossa vida. Controlam o fluxo de bens e de capitais, são os autênticos donos do mundo conhecido, pesquise em sua cabeça e vai encontrar todas as informações disponíveis sobre elas, o governo é uma extensão delas atualmente.
_ Não estou compreendendo onde você quer chegar.
_ E nem irá compreender tão cedo. Está disposto mesmo a ir até o fundo nesta história? Para isso, você terá que aprender a lidar com o seu cérebro sem usar o cerétalo, é muito difícil e as informações que lhe darei não poderão nunca passar pelo seu bio-computador.
Iosef fora colocado perante uma difícil decisão. Tomás era um estranho, parecia um maluco falando de coisas que ele não compreendia, no entanto, era justamente esta incompreensão que o intrigava, o que poderia haver no mundo que não podia ser informado ou passado pelo cerétalo? A curiosidade despertada falou mais alto.
_ Eu quero saber de tudo o que puder, sinto algo em mim que diz que não posso voltar atrás.
_ Este seu sentimento podem ser duas coisas, uma, um sentimento verdadeiramente seu, autônomo, que é movido pela curiosidade. Outra, é que o governo deseja saber o que eu sei e pode estar usando-o neste momento... mas nós não temos escolha e, a partir de agora nós iremos iniciar o seu treinamento, somos longevos mas eu não posso perder tempo!
Capítulo 4
APRENDIZADO
No dia seguinte, Iosef já estava devidamente instalado em um quarto do apartamento de Tomás. Logo cedo, durante o café, começou o ensinamento.
_ A primeira coisa que você tem que aprender é decorar a seqüência de ligar e desligar o cerétalo – disse-lhe Rena.
_ Como se decora alguma coisa.
_ Repetindo a coisa milhões de vezes –completou Tomás – pegue a fórmula no papel, execute-a, depois, religue, execute novamente, e assim, faça muitas vezes isso.
O primeiro dia foi dedicado a isso. Os dias seguintes a ensinar Iosef a lembrar do que conversava quando estava com o cerétalo desligado. Iosef lutava para se lembrar de qualquer coisa, e era muito difícil, porque, além do esforço mental, havia o esforço físico que parecia insuportável pois não havia mais o cerétalo a regular as suas funções orgânicas e dosar a energia de seu corpo. Sem o cerétalo, sentia dores nos músculos e ofegava quando andava mais rápido.
Todo dia de manhã, Rena participava intensamente do treinamento de Iosef, que se maravilhava com aquela mulher diferente das marcianas que conhecia. Todos falavam que as terrestres eram mais bonitas porque usavam mais os músculos devido à força da gravidade, e ele compreendeu que a forma do corpo humano era mesmo diferente de acordo com os planetas em que os humanos cresciam, os marcianos eram menos fortes, mais esguios, mais retos, os lunáticos tinham pernas muito finas e braços fortes, os europianos assemelhavam-se aos terrestres.
_ Você já sabe usar bem o cérebro, Rena? Ele já lhe ensinou tudo, certo?
_ Sim, no começo foi difícil, tive medo deste novo conhecimento, mas agora, sinto-me bastante segura, aprendi a usar o cerétalo somente para controlar as minhas funções vitais, também o uso para adquirir conhecimento, mas deixei de usá-lo para pensar. Você também vai aprender.
_ E Tomás?
_ É um grande homem, sabe mais coisas do que podemos imaginar.
_ É por isso que está com ele?
_ Não. É porque me sinto bem. Tem quase duzentos anos, é amável, carinhoso e sensual. Sou uma mulher antiga, já vivi com outros homens e outras mulheres, mas prefiro ficar com os homens. E você?
_ Lá em Marte vivo sozinho, tenho muitos amigos com quem tenho bons relacionamentos, lá não fazemos distinções se estamos com homens ou com mulheres, por isso nossos relacionamento não são fixos, mas é muito bom. Diga-me, Rena, como são os clubes da Terra?
_ Exatamente iguais aos de Marte, não há diferença, é um padrão, a única diferença é que aqui existem muitos a mais, mas eu Tomás não os freqüentamos.
_ Não freqüentam? O que fazem depois do trabalho? Não se divertem?
_ Nós conversamos, usamos o cérebro, estudamos e é isso o que você vai aprender, usar o cérebro, seu treinamento vai ensiná-lo que os clubes não são a coisa mais importante.
Duas semanas depois, Iosef sentia-se outro homem, conseguia ler um jornal e guardar as principais noticias, fazia cálculos matemáticos e conseguia recontar uma história guardando os acontecimentos mais importantes dela. Desligava e ligava o cerétalo com facilidade e aprendeu a se lembrar sem usar o cerétalo. Sentia-se bem fisicamente, estando totalmente adaptado a Terra. Tomás Magril entendeu que ele estava pronto para saber de mais coisas.
_ Você está pronto, Iosef?
_ Sim, acho que agora aprendi a usar o cérebro.
_ Nós vamos fazer uma pequena viagem. É preciso que, desde já, você desligue o seu cerétalo. A partir de agora, o seu aprendizado terá uma utilidade. Porque nós vamos nos divertir um pouco.
_ Parece que até que enfim iremos a um clube, estou curioso quanto às manifestações terrestres.
_ Esqueça o clube, Tomás quer dizer que vamos para um lugar muito melhor do que um clube. – disse-lhe Rena.
Os três se dirigiram até o espaço-porto do enorme prédio em que Tomás morava e saíram de carro aéreo, cerca de quinze minutos depois, Iosef surpreendeu-se quando acabou a paisagem urbana e, repentinamente, começou a ver uma enorme onda verde.
_ O que é aquilo?
_ É a floresta, chamamos de Mata Atlântica. Um grande trecho preservado de acesso restrito aos humanos. Visitas são agendadas, todos com guardas e acompanhamento, é uma floresta muito bonita e nós vamos levá-lo para conhecer uma cachoeira fantástica no meio desta cadeia de montanhas, aqui chamamos de serra da Bocaina.
Iosef nunca havia visto uma floresta em sua vida, isto não existia em Marte e ele sabia da existência das florestas preservadas na Terra, não imaginava que o aglomerado de árvores fosse tão bonito e fantástico.
_ Começo a entender porque vocês, terráqueos, relutam em sair deste planeta.
_ É verdade, Iosef – falou Rena – ele é muito bonito, tem uma natureza diferente e variada que não se encontra em nenhum outro lugar do sistema solar. Felizmente, os antigos conseguiram preservar quase tudo, foi por pouco, no século vinte, todas as florestas estavam a ponto de se extinguir completamente, mas os antigos conseguiram preservá-las, replantaram florestas, conservaram.
O carro pousou em cima de uma rocha grande. Os três desceram, ao fundo, ouvia-se um ruído diferente, começaram a caminhar por dentro da floresta, Iosef estava estupefato e assustado com a quantidade de sons e de formas que via na floresta. Havia árvores enormes e uma grande variedade de plantas, sem perceber, ele começou a sentir coceiras no braço e pequenos zumbidos nos ouvidos.
_ O que é isso?
_ Mosquitos! Acostume-se com eles.
Iosef estava muito cansado, sua resistência física não o ajudava e ele suava demais, o que atraía mais mosquitos. O clima quente e úmido da floresta o sufocava, os cerca de duzentos metros que andaram pareciam duzentos quilômetros, ao final da trilha, o ruído tornou-se muito forte e eles chegaram numa clareira, uma enorme quantidade de água caía de altura de mais de cinqüenta metros, formando uma piscina natural embaixo.
_ Isto é uma cachoeira Iosef, uma maravilha da natureza! Dispa-se, vamos tomar um banho nesta água pura! – convidou Tomás.
Rena foi até uma pedra e se despiu, guardou sua roupa dentro da mochila que trazia, Iosef pôde admirá-la toda nua e percebeu que as curvas das mulheres terrestres realmente eram mais interessantes do que as marcianas, Tomás também se despiu e mergulhou junto com ela, os dois se encontraram no meio da piscina natural, chamaram o outro.
_ Venha, homem, o que está esperando? Pense que você está pulando numa piscina comum.
Iosef despiu-se e pulou na água, sentiu um choque enorme, pois a água era muito gelada, mas, ao mesmo tempo, sentiu um prazer muito grande de nadar naquele local, sentia-se como se fosse um viajante do futuro que aportava na Terra primitiva.
Após alguns minutos de banho, os três pararam e sentaram-se numa pedra para aquecer-se ao sol. Uma nova sensação para Iosef que estava muito estimulado com aquela experiência.
_ Bem Iosef – disse Tomás – eu não o trouxe aqui apenas para tomar banho, queria que você compreendesse o que são estas sensações e percebesse como é a reação do seu corpo sem o cerétalo, o que você está achando?
_ Sensacional, é muito excitante, minha cabeça está muito ativada. Estou pensando em várias coisas...
_ E uma delas é fazer sexo comigo – disse-lhe Rena.
_ Sim, é verdade.
Rena o tomou pelas mãos e o puxou para a água. Tomás ficou observando-os, anotando mentalmente as reações do seu pupilo, depois de terminado aquele ato, eles voltaram para a pedra em que Tomás se encontrava, Iosef sentia-se no ápice do prazer físico e mental.
_ O que você está sentindo, Iosef?
_ Uma satisfação física e mental muito grande! Nunca senti nada igual antes. Nas vezes em que fiz sexo com as mulheres ou os homens de Marte, nunca senti esta sensação de forma tão satisfatória.
_ Esta é uma das reações primitivas que a falta do cerétalo produz na nossa mente, é o prazer quase chegando ao torpor, a alegria, a descontração, vindas de um sentimento que se chama paixão, você está apaixonado pela Rena e, quando vocês realizam o ato sexual, esta paixão se completa e o prazer é muito grande. Mas tem o outro lado que você precisa sentir também.
E Tomás tomou Rena pela mão e foi a sua vez de praticar sexo com ela no meio da piscina natural. Iosef observou tudo e se conteve para não ir lá e separá-los, sua razão mandava esperar para entender o que Tomás queria explicar-lhe.
_ O que você sentiu agora?
_ Uma coisa estranha, eu não queria que vocês realizassem isso. E isto é estranho porque, em Marte, o sexo é livre, cada um pode realizá-lo com quem deseja e não temos restrições ou impedimentos quanto a horário e local. Mas aqui, agora, eu queria impedi-los, fiquei com vontade de separá-los, Tomás. Aliás, estou estranho...
_ Você está sentindo ciúme e raiva, sentimentos estranhos que os humanos tinham em abundância antes da obrigatoriedade de uso do cerétalo. Nós vivíamos em guerras constantes por causa destes sentimentos associados à vingança, coisas do passado que foram superadas e não há mais guerras e nem mesmo fabricação de armas para uso civil, somente as forças policiais usam armas.
_ Entendo! Os seres humanos tinham vários sentimentos, uns bons como a paixão e outros maus como o ciúme e a vingança, eles foram eliminados com o advento do cerétalo. E você quer me convencer de que? Qual é o mal em se deixar pensar através de um aparelho que controla as minhas reações físicas e psíquicas e reduz a minha capacidade de fazer o mau? Vejo que foram bons acontecimentos.
Rena interferiu.
_ O que Tomás está tentando dizer-lhe, Iosef, é que a humanidade perdeu as suas características mais naturais. O enfrentamento do desafio, a busca de novos mundos pelo prazer de conquistar, a individualidade do ser que escolhe o seu destino. Nós não vivemos mais em conflito e isto é bom, mas, também, não vivemos mais nenhum desafio, não vivemos mais as emoções como elas são, vivemos em uma máscara, fingimos que somos seres humanos, mas estamos trabalhando como abelhas que servem à colméia, continuamos a explorar o espaço, mas apenas para suprir as necessidades da Terra e, talvez, de algo maior, que não conhecemos. O sexo é livre em todo o sistema solar e ninguém sente ciúmes ou raiva quando vê a pessoa desejada amando outra pessoa porque, de alguma maneira, o sistema do governo central aboliu este sentimento do cérebro através do cerétalo.
_ Sim, mas que mal há nisto tudo? Estamos vivendo cada vez mais e melhor, todos tem sua função na sociedade, não existem mais guerras.
_ Sim – continuou Rena – estamos vivendo mais e melhor, você percebeu que não há uma pessoa triste no universo? Todas as pessoas são alegres, estão certas do que fazem, sabem o que devem fazer, como agir, como pensar, ninguém tem dúvida, como esta que você teve agora. Todos vivemos cada vez mais de uma maneira medíocre.
_ Tristeza, dúvida, não compreendo porque há como sentir tristeza. Há os clubes, todos nós nos divertimos neles, o mundo é certo e a sociedade é organizada, sabemos como as coisas são, não há porque ter dúvidas – rebateu Iosef.
_ Mas você teve dúvida, agora, sem o cerétalo para orientar-lhe, você admitiu que pensou em separar-me de Tomás.
_ Sim, pensei nisso, e tive dúvida, não soube o que fazer. Fiquei parado tentando compreender o que se passava.
_ E sem o cerétalo, qual seria a sua reação? – perguntou-lhe, Rena.
_ Talvez me juntasse a vocês, para que fizéssemos sexo a três.
_ Isto que pensamos que você faria, pensamos que agiria de acordo com a reação mais óbvia. Erramos. Isto é bom. Significa que você não é totalmente orientado pelo cerétalo - afirmou Tomás.
Ficaram por mais uma hora ao Sol, secando-se e conversando. Então, Tomás decidiu que era hora de voltar, os três se vestiram. Levantaram vôo para o retorno e Iosef perguntou a Tomás:
_ Você disse que esta área é restrita às pessoas, não é qualquer um que pode vir aqui, como você conseguiu autorização para isso?
_ Pensei que você não fosse me perguntar. Aprendi alguns truques desde que deixei de usar o cerétalo constantemente, há falhas pequenas no sistema de computadores e me aproveitei para conseguir autorização para visitar o parque.
_ Mas isto deve ser ilegal.
_ Talvez seja, talvez não seja, ainda não descobri se há leis para proibir o uso destas falhas.
Alguns minutos depois já se avistava a mancha urbana e os prédios de mais de duzentos metros de altura. Desceram no espaço porto do prédio de Tomás e voltaram para o apartamento.
_ Seu treinamento acabou por enquanto, agora é você quem usa o cerétalo e não o contrário, como foi antigamente, a responsabilidade é grande. Há muitas coisas que você não sabe, Iosef – disse Tomás.
_ O que, por exemplo?
_ Para que você pensa que há exploração de minérios e água em Europa?
_ Para suprir as necessidades da Terra. Óbvio! – respondeu prontamente.
_ A exploração de água é para Marte e a Terra, sim. Mas eu desconfio que não é só isso. Estou estudando há muitos anos as necessidades e a produção e percebo que, como noventa e nove por cento dos resíduos produzidos pelo ser humano é reaproveitado, a produção poderia ser muito inferior, algo como, pelo menos, cinqüenta por cento menos. A questão é: para onde vão os outros cinqüenta por cento da produção de toda a humanidade?
_ Não compreendo...
_ Claro que não, Iosef. Você não está raciocinando corretamente, se a produção de aço de todo o sistema for de 100 milhões de toneladas e nós gastamos 50 milhões, onde estão os outros 50 milhões? E não é só isso, alimentos, produtos acabados, tudo é produzido em quantidade superior à necessária.
_ Talvez haja um reaproveitamento... ou estoques...
_ Não há nem reaproveitamento e nem estoques das sobras, é este o grande mistério que estou tentando resolver. Quero saber qual é a ligação que existe, o que está acontecendo no mundo habitado. Eu penso que haja uma falha grave no sistema. Isto eu quero saber e continuo pesquisando. O que eu queria é que você voltasse para Marte e fizesse lá também esta pesquisa, acompanhe a trajetória dos produtos, faça os cálculos para saber se eu estou certo, se forem semelhantes, precisamos pensar sobre o assunto.
_ Farei isso, Tomás.
_ Tem mais uma coisa que me intriga.
_ O que?
_ Os crimes clássicos, como matar, roubar, extorquir e traficar, foram abolidos há alguns séculos, não há mais criminosos, e eu fui tratado como criminoso ao descobrir o código que desliga o cerétalo. Há algo errado em tudo isto, você não acha? Porque o sistema trata como criminoso alguém que volta a pensar como era antigamente, não é errado?
_ Falando desta maneira, acredito que sim.
_ Você vai retornar a Marte em breve, gostaria que você fizesse algumas pesquisas. Daqui da Terra é difícil acessar todas as informações marcianas, há outras coisas que eu gostaria de conversar com você, por enquanto, preciso que você verifique quais os totais de produtos marcianos, para onde são enviados.
_ Isto me parece fácil, basta acessar o canal de economia.
_ Talvez não seja tão simples assim. Talvez você não consiga todas as informações que deseja, talvez, ao usar o próprio cérebro para compreender as informações que lhe chegarem, você faça questionamentos que ficarão sem respostas.
_ Amanhã, Iosef, em vez de cachoeira, iremos conhecer o mar, já viu o oceano de perto?
_ Não brinque comigo, só vi o oceano em filmes, em Marte não temos mares, temos apenas lagos.
No dia seguinte, logo de manhã, seguiram viagem rumo a praia. O carro voador sobrevoou a Serra do Mar e Iosef avistou ao fundo o oceano e o contorno da praia e a cidade litorânea. Pousaram num local de estacionamento, próximo a uma praia.
Rena quem alertou Iosef.
_ Não deixe de vir calçado, a areia é quente demais!
Então, os três seguiram pelo caminho e chegaram na praia, começaram a caminhar na areia e, novamente, Iosef sentiu novas sensações de desconforto e cansaço, como ele usava o cerétalo normalmente, em pouco tempo, o seu corpo foi adaptado a nova situação.
Iosef observou o mar, estavam de frente para o Oceano Atlântico, em uma praia cheia de gente, alguns se banhando, outros deitados ao Sol.
_ Quanta gente aqui, parece que estamos em um dos clubes! – exclamou.
_ Não deixa de ser – afirmou Rena. Ainda usamos a praia como ponto de diversão, para nós, então, que moramos aqui, no antigo Brasil, a praia é uma das coisas mais ancestrais que temos na memória coletiva.
_ O mar é fantástico, é muito mais belo ao vivo! Eu quero tomar um banho.
_ Vá em frente – disse-lhe Tomás. Eu não quero entrar na água, é muito salgada para mim.
_ Salgada! Eu quero saber como é isso!
Iosef despiu-se e foi ao mar. Sentiu a água ligeiramente fria, mas agradável, avançou e começou a sentir o baque das ondas no corpo, o que lhe dava uma sensação de prazer. Rena o acompanhava, também totalmente despida. Uma onde mais forte bateu no rosto dele e o jogou para trás, ele se desequilibrou, veio outra onda forte e bateu, jogando ao fundo, fazendo-o rolar na água, levando-o mais próximo à praia. Ele se levantou ligeiramente tonto e Rena se divertiu com a desventura do companheiro.
Ela foi ao seu encontro, ajudá-lo a se levantar.
_ Então, Iosef, já descobriu o gosto salgado do mar?
_ Descobri. É delicioso! As ondas, eu tentava prever quando viriam, estava usando o cerétalo para fazer o cálculo, mas são imprevisíveis!
Voltaram para junto de Tomás. Resolveram caminhar pela beira da praia. Passaram o dia na praia, conversando, descansando, tomando banho de mar, conhecendo outras pessoas. Um dia típico de turismo.
Alguns dias depois, era a hora do retorno a Marte.
Foi da gigantesca estação espacial Mir que Iosef pensou no trânsito de pessoas e mercadorias entre os planetas, de uma das janelas de observação do espaço, ele olhava a Lua com as suas crateras, lembrando-se dos poetas antigos, e tentava entender algumas coisas. A cada dia que passava, tornava-se mais natural para ele o uso do próprio cérebro, restringindo o uso do cerétalo. Pensava nas palavras de Tomás Magril, lembrava-se do prazer que sentira com Rena e nas coisas que os humanos fizeram. O que era aquele mundo afinal? As pessoas viviam, trabalhavam e se relacionavam, mas, depois das sensações que tivera com o uso das suas próprias capacidades mentais, depois da força dos sentimentos que vivera, ele começou a questionar a validade de se usar o cerétalo como os homens fizeram, de forma a não pensar mais com o próprio cérebro.
Um acontecimento fortuito o trouxe de volta dos pensamentos para a realidade quando um rapaz de cadeira de rodas esbarrou nele. Iosef olhou para o moço pedindo desculpas, aceitando os pedidos, mas alguma coisa chamou a atenção dos seus olhos, era uma pessoa diferente, parecia um ser humano normal, mas, ao mesmo tempo, parecia tão diferente. Talvez fosse de algum lugar da Terra que Iosef não conhecesse, talvez Iosef estivesse pensando coisas e era isso que Tomás queria! Que ele pensasse coisas. Teve a idéia de pesquisar no seu cerétalo a identidade daquele ser humano. Iosef olhou-o bem e se concentrou para que a informação chegasse perfeita ao cerétalo que pesquisou através das conexões com todos os centros de pesquisa do sistema, qual era a origem daquele homem. Resposta: nenhuma. Aqueles traços físicos não correspondiam a de nenhum povo humano de qualquer dos planetas habitados! Iosef tentou efetuar uma conexão direta com o cerétalo do homem e não conseguiu acesso, pois havia um bloqueio no sinal de comunicação, o que era comum, pois muitas pessoas simplesmente não gostavam de ser perturbadas por outras.
Por coincidência, o homem tomou o mesmo ônibus que Iosef com destino a Marte, dentre os quinhentos passageiros que eram transportados, seria muito fácil nos próximos três dias que durava a viagem, Iosef reencontrá-lo. O fato de Iosef desconfiar de algo errado era inédito, afinal, o cerétalo tornou impossível a existência de dúvidas de identidade, todos, ao nascer, eram identificados pelo código genético. Esta informação era repassada ao controle do governo terrestre que podia identificar e localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do sistema solar em questão de alguns segundos, pois o cerétalo dava constantemente a localização daquela pessoa procurada. Desde então, ninguém mais desconfiava de nada, pois ninguém podia esconder-se do controle, por onde qualquer pessoa passasse, havia identificadores que tinham permissão para acessar os dados pessoais e saber de quem se tratava. Os identificadores ficavam instalados nas portas de todas as construções, nas ruas, nos centros comerciais, nos locais de trabalho. E, nas zonas rurais, onde não era possível instalar os identificadores, as pessoas eram localizadas através do seu posicionador global, uma das funções instaladas no cerétalo que controlava a localização via rádio.
Todos os trajetos individuais eram conhecidos pelo governo central. No início, o uso do cerétalo permitiu a identificação dos criminosos, pois ninguém mais podia mentir com a prova dos registros e esta foi causa do fim dos crimes. Tornou-se impossível praticar um crime e não ser descoberto, pois o governo central sabia quem esteve no local do crime na hora do crime e, quando havia uma conexão com a mente do criminoso, no caso de uma vítima de homicídio, até quem era o autor já era sabido pelo governo. Afinal, tudo que era enxergado pelo olho da vítima, era gravado no grande sistema digital que regia o mundo.
Ao mesmo tempo em que o controle trouxe o fim da violência humana, carregou a individualidade das pessoas, pois não havia mais o anonimato dos atos. Tudo era conhecido do governo terrestre e as pessoas se acostumaram com esta idéia. Por isto, Iosef imaginava que tudo o que ele fez em companhia de Tomás e Rena pudesse já ser do conhecimento do governo central e ele não sabia se cometera uma contravenção. Tinha receio de ser preso e das conseqüências do que fizera, mas, ao mesmo tempo, gostaria de ir além, de aprofundar-se no uso do cérebro e dos novos conhecimentos que estavam surgindo para ele.
Então, durante o retorno a Marte, Iosef desligou o cerétalo e decidiu pensar nas coisas que aconteceram e, o último fato chamou demais sua atenção e começou um questionamento interno: porque alguém estaria de cadeiras de rodas? Lembrou-se que era muito raro o uso de cadeiras de rodas, as próteses biônicas eram tão perfeitas quanto os membros originais, muitas vezes, até melhores. Usar cadeiras de rodas era um fato raríssimo, só em casos muito excepcionais. Então, porque havia um rapaz usando uma cadeira de rodas? Parecia muito novo para usar, além de tudo.
Esta nova capacidade de pensar o intrigou. Enquanto esteve com o cerétalo ligado não fora capaz de se questionar, somente ao desligá-lo, percebeu que era um fato incomum.