Capítulo 1
TOMÁS MAGRIL
O Sol da alvorada coloria o céu de um tênue azul-rosado naquela fria manhã de Marte. O ar puro, fornecido pela usina de processamento instalada em 2459, há quinhentos anos atrás, entrava pelos pulmões de Tomás Magril e o animava ao observar a vastidão das plantações de grãos. Em breve, daria as ordens para as máquinas semeadoras, havia muito a plantar naquele dia para completar a cota estipulada pelo governo central. Enquanto isso, aguardava em silêncio, sentado à mesa, a chegada de sua companheira.
Rebeca, sua esposa, chegou reclamando um pouco do chuveiro, que aquecia a água acima do que ela queria. Depois, foi à mesa da sala, o café da manhã estava todo pronto, ao ver que não havia mamão fatiado, pensou na fruta e, em alguns segundos, o criado robô a trouxe e a colocou na mesa.
Tomás tirou os olhos da janela e bebeu um gole do café.
_ Está disposta hoje, querida?
_ Não muito, Tomás. Alguma novidade?
_ Nenhuma, há anos que não há novidade neste mundo perdido. Nem lá na Terra há mais novidade, pelos jornais que nos chegam constantemente, as notícias são sempre as mesmas.
_ Mas na semana passada houve um maremoto que quase submergiu o Rio de Janeiro, no continente americano! – retrucou Rebeca.
_ É verdade, o clima da Terra é a única coisa que o homem ainda não consegue controlar ou prever com exatidão, de vez em quando aparece um maremoto, um terremoto, uma erupção vulcânica... Aqui em Marte nem isso acontece!
_ É um mundo perdido, por isso viemos para cá, lembra-se?
_ Sim, viemos para fugir de todos os controles terrestres, mas não conseguimos, Marte está tão ruim quanto a Terra, neste ritmo, assim que instalarem colônias em Io, iremos para lá.
_ Você pretende ir ao clube, hoje, Tomás? Faz tempo que você não vai lá. Estou preocupada, nossos amigos perguntam por você e não tenho mais desculpas, apenas digo que você não deseja ir.
_ Não. Não gosto daquele lugar, prefiro meus estudos, olhar as nossas plantações, pensar sobre o mundo.
_ Você está muito estranho, creio que é o único homem de Marte que não gosta dos clubes, é lá que as pessoas estão... As coisas acontecem. Há muita gente pensante neles, artistas, escritores, você gostava tanto de ir. Parece que não deseja mais encontrar os nossos amigos.
Tomás esticou sua mão por cima da mesa e segurou a mão de sua esposa com delicadeza e lhe disse:
_ Você é suficiente para mim, Rebeca, não preciso de mais ninguém! Aqui, em nossa casa, tenho tudo que desejo.
_ Obrigado, Tomás, você é muito gentil!
Depois, ele acrescentou:
_ Além do mais, gosto de ver os jornais terrestres, de imaginar como o nosso velho mundo está, e estou estudando algo muito importante.
_ Você continua estudando o tal programa de computador...
_ Continuo, e depois que eu fizer a programação do dia para os robôs, volto ao estudo.
Terminaram o café da manhã. Tomás programou as máquinas para o plantio, depois, sentou-se à sala para a concentração, queria informações sobre as cotações do milho e da soja, produtos que lhe faltariam em alguns dias. Iria ver os jornais, precisava ainda continuar os seus estudos, e adquirir mais um diploma à sua vasta coleção de conhecimentos. Apesar da sua formação em engenharia agrônoma, e especialização e trabalho em atividade de produção de vegetais, gostava de conhecer outras especialidades, mesmo sabendo que não conseguiria autorização para exercer outra função, somente quando outra pessoa falecesse ou se houvesse autorização governamental, ele poderia exercer outro trabalho, a legislação era rígida para que não houvesse desequilíbrio de produtos e de serviços.
Tomás se concentrou para receber as notícias do jornal em seu cerétalo, o pequeno bio-computador de cerca de um centímetro cúbico, contendo mais de novecentos bilhões de trilhões de gigabites de informação, onde recebia as notícias, ininterruptamente, de acordo com a sua vontade, que lhe eram enviadas através de ondas de rádio, o minúsculo aparelho, implantado em seu cérebro logo após o nascimento, também servia para enviar mensagens para qualquer pessoa, para ordenar às máquinas que fizessem o que lhes era mandado e para tudo o que ele pensasse, pois era o que bastava. Na verdade, nem conversar através de palavras seria necessário, poderia comunicar-se com as pessoas somente pelo pensamento, mas os humanos adotaram um código de ética informal em que a palavra falada era praticada por todos quando estavam frente a frente, como uma reminiscência do passado que não caíra em desuso. E também porque o tom da voz, muitas vezes, dizia mais do que as palavras.
Rebeca também sentou-se para receber as notícias do dia, depois de um tempo, interrompeu o companheiro.
_ Tomás, estou sentindo-me estranha hoje! Meu estômago não está bem, estou muito preocupada, apesar do meu médico dizer-me que estou com a saúde em dia! Sinto um certo enjoo. Será que há alguma falha em meu código genético?
_ Não sei, Rebeca. Dizem que o único mal que ainda nos ataca é a falha do código genético. O ser humano já está atingindo o limite de duzentos anos de vida, os médicos acreditam que poderemos chegar aos trezentos. Você tem apenas cento e dois, está em ótima forma. O que você está sentindo exatamente?
_ Mal estar generalizado, algo no estômago! Sensação estranha. Enjôo. Tonturas.
_ Aconselho a procurar o doutor Magno.
Ela resolveu descobrir o que era isto que sentia. Concentrou-se e buscou no receituário médico do seu cerétalo alguma coisa que pudesse relacionar-se com o seu estado, não encontrando, permitiu que o aparelho enviasse ao doutor Magno todas as informações sobre seu estado de saúde, pois todos os exames de sangue, de hormônios, de presença de minerais, de bactérias e vírus, eram feitos constantemente pelo cerétalo. O doutor, residente na capital, na cidade de Marte I, recebeu as informações e lhe deu a notícia:
_ Rebeca, parece absurdo, mas você está grávida!
Ela não entendeu e não acreditou.
_ Doutor, o que é isto? Que doença é esta?
_ Não é doença nenhuma! Você nunca ouviu falar em gravidez?
_ Sim, mas comigo? Não pode ser? Há séculos que não se fala em gravidez humana!
_ Talvez no seu cerétalo não haja mesmo esta informação, que é quase exclusiva dos médicos. Você está esperando um filho natural, gerado dentro do seu útero, por alguma falha do seu código genético combinado com o seu marido, houve a geração do embrião.
Ela ficou estupefata, nunca imaginaria que isto poderia acontecer-lhe!
_ Doutor! Como isso é possível? Eu não sei o que é estar grávida, nunca desejei nenhuma criança e nem estou preparada para isso!
_ Não há com o que se preocupar, Rebeca, isso ainda acontece com as mulheres, é uma chance em cinqüenta bilhões, mas nós ainda não sabemos porque algumas mulheres ainda engravidam. Fique tranqüila, você não vai carregar este feto no seu útero, mande-o para uma das incubadoras, nelas o feto se desenvolve perfeitamente, inclusive, se ele tiver qualquer falha no desenvolvimento, podemos corrigir com a aplicação genética correta. Se depois de nove meses você ainda o quiser, poderá requisitá-lo ao governo, senão os berçários cuidarão dele até a vida adulta, são apenas dezoito anos. Se não quiser tê-lo, basta avisar-me, mandar-lhe-ei um abortivo.
_ Doutor, quantas mulheres grávidas o senhor conheceu?
_ Além de você, mais duas, uma há mais de cinqüenta anos atrás e outra no século passado. É muito raro.
_ O que elas fizeram com os fetos?
_ Ora, claro, entregaram-no para o programa de incubação, deixaram-nos aos cuidados dos especialistas em embriologia humana, que os fizeram crescer. Hoje devem ser pessoas saudáveis. O que você vai fazer?
_ Ainda não sei, preciso pensar sobre o assunto.
_ Tudo bem! Mas pense rápido, que ele cresce logo.
Encerraram a comunicação. Rebeca ficou ali a pensar sobre o que fazer. Sentou-se confortavelmente no sofá e se conectou com a Biblioteca de Informação Terrestre para pesquisar e conhecer mais sobre gravidez. Descobriu que nenhuma mulher engravidara em Marte nos últimos cinqüenta anos, aprendeu mais sobre o que era aquilo que se passava com ela e colheu mais informações.
Um pouco mais tarde, Tomás Magril apareceu na sala.
_ Estava tentando conectar você, mas você parecia fora do ar, o que aconteceu?
_ Tenho uma novidade extraordinária, você disse que nada acontecia neste planeta, agora aconteceu.
_ O que aconteceu?
_ Eu estou grávida.
Tomás se surpreendeu e se calou sem reação.
_ Você sabe o que isto significa?
_ Sei...
_ Agora é você que está estranho, não gostou da notícia?
Tomás retornou a si. Um milhão de pensamentos o tomaram, chegara a hora, ela saberia, enfim, de onde ele viera e teria que saber o que fazer com a criança que estava para vir.
_ Eu não te contei tudo sobre mim, preciso revelar-lhe um segredo.
_ Como? Existem segredos em você, sempre conectei seu cerétalo e nunca você me escondeu qualquer informação? Como conseguiu? Ninguém consegue esconder uma informação no cerétalo...
_ Consegue, eu descobri um jeito, aprendi e lhe ensinarei, talvez seja importante, mas não é isso que eu quero contar-lhe. A verdade é que eu sou um humano concebido de forma natural, não fui gerado numa incubadora, eu nasci de dentro de uma mulher! Eu sou um dos últimos homens a nascer assim, tenho cento e setenta e três anos, e quase não havia mais humanos naturais, eu sou um dos últimos, depois de mim, talvez existam mais quatro ou cinco indivíduos. Há pelo menos uns cinqüenta anos que eu não ouço falar de gravidez, uma mulher que pode engravidar é tão rara quanto um humano natural, é coincidência demais! Precisamos pensar seriamente nisso! Eu gostaria muito que esta criança nascesse da forma como eu nasci, pois existem mais coisas sobre mim que você desconhece!
_ O que mais?
_ Depois de ser gerado pela minha mãe, ainda fui criado por ela, que me educou e me ensinou a crer em um Deus, um ser superior que rege nossas vidas. E eu acredito Nele.
_ Como? Você está falando de religião, eu só ouvi falar disto nos meus estudos de história, parece que havia uma entidade... a Igreja Católica, que se extinguiu há muitos anos atrás por pura falta de pessoas que acreditassem... hoje em dia ninguém mais discute isso! O grande debate do século vinte e três foi a existência ou não de Deus, de um ser superior aos humanos, isto é coisa do passado mesmo!
_ Não posso discutir com você a existência ou não de um Deus e nem é esta minha intenção! A humanidade conquistou tudo, chegamos e vivemos aqui em Marte há mais de quatro séculos, há homens morando nas luas de Júpiter, todo sistema solar e o resto do espaço será uma questão de tempo, construímos máquinas que nos fazem viajar mais rápido do que em qualquer outra época, em questão de alguns séculos talvez estaremos viajando a velocidade da luz, mas, apesar de tudo isso, você poderia explicar a coincidência de nos encontrarmos e vivermos juntos? Por que nos escolhemos quando poderíamos nem mesmo viver com alguém? A nossa história particular, a forma como nos conhecemos, o filho que está em seu ventre, isso é um milagre, há um motivo grande para isso, e eu não sou capaz de compreender sem acreditar que haja um ser superior que nos guia.
Rebeca ouviu as palavras do companheiro e pensou ainda muito tempo naquele assunto. Entendia que a lei das probabilidades explicava todos os acontecimentos que o companheiro lhe colocara, sabia que tudo era pura coincidência e um caso em alguns bilhões poderiam acontecer... mas ela era uma mulher fértil e com um útero, um órgão tão inútil depois que os bebês passaram a ser gerados em incubadoras. Ela não entendia como era possível a uma mulher ficar com um bebê por nove meses dentro do seu corpo e depois expeli-lo, saindo uma criança, aliás, ela entendia, por que esta informação existia dentro do seu cerétalo, mas ela pensava ser inacreditável que alguém ainda se sujeitasse a isso... mas as palavras do companheiro!
No dia seguinte, doutor Magno contatou Rebeca para saber da decisão dela. Ele já preparava uma incubadora para receber o embrião e o contrato de preferência na aquisição dele, após completar o ciclo gestacional, pelo casal Tomás e Rebeca, tudo de acordo com a lei, pois assim era a praxe entre os médicos, apesar de que ninguém mais cuidava de crianças, tarefa que ficava a cargo do governo.
_ Está tudo pronto, Rebeca, o que você irá querer?
Depois de um certo silêncio no contato telepático, ela concluiu:
_ Mande-me um abortivo.
_ Bom, se é esse o seu desejo, em uma semana estará entregue em sua casa, mas você precisa depositar o custo na conta da farmacêutica! – o médico passou o valor e a conta e, pelo cerétalo, Rebeca depositou o valor retirado de sua conta bancária.
Tomás Magril havia descoberto como monitorar o que se passava no cerétalo de outras pessoas, ainda que não houvesse a autorização de praxe, e tomou conhecimento da decisão de Rebeca, ele, contrário ao aborto, ainda tentaria convencê-la, mas nada poderia fazer, senão exigir, de acordo com o previsto na lei, que em vez de aborto, ela lhe cedesse o embrião para que ele arcasse com as despesas da incubadora e tivesse aquele filho. Pensou num modo de convencê-la. À tarde, após verificar se as tarefas estavam sendo cumpridas corretamente pelas máquinas, voltou a conversar com Rebeca.
_ O que você decidiu?
_ Vou abortar esta criança, não a desejo.
Apesar dos anos em que viviam juntos, do respeito que possuía por Rebeca, Tomás sentiu raiva pela decisão dela, sentiu o coração acelerar, a quantidade de adrenalina aumentou, instantaneamente, o seu cerétalo começou a alterar o funcionamento dos seus órgãos para liberar as substâncias que o acalmariam, reduzindo a sua raiva e o acalmando.
_ Esta criança também é minha, eu gostaria de ter um filho. Seria uma grande realização para mim.
_ Posso ceder-lhe o embrião, está na lei, mande-o para a incubadora e daqui a dois anos, você terá seu filho, até antes, se você estiver disposto a cuidar dele nos primeiros meses após o período gestacional.
_ Você não compreende. Eu gostaria que ele nascesse de maneira natural, gerado dentro de um útero materno! Pense no que eu lhe falei, não é coincidência que nós nos encontrássemos e que você seja uma das poucas mulheres que ainda podem gerar uma criança dentro de um útero! Esta criança, ao nascer, seria a continuação de uma linhagem única da humanidade, a seqüência dos nascimentos ocorridos de forma natural, talvez a última criança do mundo a ser gerada desta maneira, por favor, não deixe que isto se acabe.
_ Você está com idéias malucas, desta forma, terei que contatar o governo central para que você seja tratado.
_ Esse é o grande problema, o governo central, pense Rebeca, nós criamos um mundo perfeito, não há nada que impeça o ser humano de viver por muito tempo, de trabalhar, de conhecer o universo. Não há mais fronteiras para a humanidade, todos podemos viver muito e bem, eu andei lendo sobre os séculos passados, em que os homens morriam jovens, em que as doenças exterminavam milhões, em que havia crimes horríveis, não há nada disso em nosso mundo. A genética extinguiu as doenças, os genes não sofrem modificações, o homem vive muito. E, ao mesmo tempo, não vive mais com as emoções e com a sagacidade dos tempos idos.
_ Que emoções? Como não vive sem emoções? Quer dizer que as pessoas não se amam mais? Não sentem ódio, inveja, ciúmes? Continuamos vivendo assim!
_ Continuamos, mas com que intensidade? Qual a intensidade da vida? Uma velha pergunta sempre me vem à cabeça: O que fazemos aqui neste mundo?
Rebeca não compreendia onde o companheiro queria chegar..
_ Ora, Tomás, todos sabem que estão no mundo para viver e se dedicar ao seu trabalho, à cultura, às artes. Cada uma das pessoas se especializa no que deseja e tem a função de manter a civilização em perfeito funcionamento, garantir a produção de bens e de alimentos, usar o seu tempo para o aperfeiçoamento. Você gostava de agricultura e se especializou na produção de alimentos, eu sou pesquisadora.
_ Aí é que você se engana, Rebeca. Eu sou agricultor, mas se eu não estivesse aqui, qualquer um de qualquer lugar do universo poderia dar a ordem para que estas máquinas funcionassem, a minha profissão é de uma inutilidade tamanha, a produção de alimentos é importante, mas o produtor é uma farsa, todas as profissões são uma farsa. Se a humanidade se extinguisse hoje, as máquinas funcionariam por anos a fio até que dessem defeito e parassem. Nós pensamos que vivemos. Você leu os romances dos séculos Gregos e Romanos? Conheceu os filmes produzidos nos Séculos XX e XXI? Aqueles seres humanos viviam, tinham uma razão para existir, tinham tanto por fazer com as próprias ações, com as próprias mãos, não sei como atingimos esta vida sem sentido, mas estamos aqui, vivemos para manter a produção de bens e alimentos e as máquinas, avançamos fronteiras no universo, avançamos no conforto e na expectativa de vida para que não vivêssemos mais!
_ Não consigo entender por que você está pensando estas coisas. Para mim é tão lógico que tudo seja assim.
_ A lógica. Esta é a diferença que sinto em mim. Eu estou pensando! Descobri um meio de impedir que este aparelho no meu cérebro guie meus pensamentos, agora eu consigo pensar! Consigo desligar o cerétalo e pensar com meus próprios meios! E quantas coisas diferentes eu estou vislumbrando!
Enquanto falava, Tomás se exaltava e gesticulava, o que causava espanto em Rebeca.
_ Desligar o cerétalo? Você é louco? Nós dependemos dele para tudo o que fazemos, ele que controla o nosso fluxo vital de energia, se desligado, deixamos de usar a energia corpórea de modo equilibrado e sem desperdício, além do mais, é impossível desligá-lo.
_ Não é. Eu pesquisei muito em livros muito antigos. Aprendi a linguagem em que o céretalo funciona e inventei uma complicada fórmula matemática, instalei-a na memória do cerétalo, agora eu o ligo e desligo no momento que desejo. Ao desligá-lo, meu cérebro funciona de outro modo e eu entendo tudo de outro jeito, até as coisas que eu vejo são diferentes, os sons que ouço, parece que nunca ouvi antes, experimentei correr com o cerétalo desligado e senti uma sensação de prazer e de euforia muito maior do que a sentida nas vezes em que nos amamos, você deveria experimentar!
_ Você está realmente louco, se eu pudesse interferir em sua vida, faria com o que doutor Magno o reeducasse no uso do cerétalo, e, ainda o internasse por um período em um centro de recuperação. Mas a escolha é sua, espero que você viva, pois tenho grande apreço por você, mas você sabe que não há obrigatoriedade em ficarmos juntos, que esta é uma escolha pessoal e pode ser alterada sempre que nos for conveniente.
_ Este é o ponto. Uma escolha pessoal. Usar o cerétalo deveria ser uma escolha pessoal, o ser humano deveria viver alguns anos sem ele para que depois escolhesse se o quereria ou não. Somos obrigados a usá-lo desde o nascimento.
_ Mas, você sabe, isto é o que garante a sobrevivência da humanidade. Por muitos séculos a humanidade perseguiu um meio de acabar com a fome, as doenças, as guerras e outros males, quando se concluiu que a implantação do cerétalo ao nascer era a melhor forma, pois todos poderiam ter um conhecimento superior desde o nascimento e colaborar para a humanidade. A partir daí o mundo começou a melhorar. Em algumas gerações, acabamos com a fome e as doenças porque os novos humanos encontraram soluções, as guerras acabaram, pudemos conquistar o universo, quase atingir a velocidade da luz. Construir máquinas que acabaram com o trabalho físico. E agora, Tomás, você vem dizer que o homem deveria escolher se quer o cerétalo ou não? Não há escolha, o cerétalo aperfeiçoou o ser humano, levaram-se alguns séculos, desde que o computador, a fibra ótica e o chip foram inventados até chegarmos ao cerétalo e você acha que devemos escolher? Não há seres humanos tão perfeitos quanto os que existem hoje, e nós podemos escolher o que desejamos para a nossa vida, podemos experimentar tudo o que quisermos e temos anos a fio pela frente para aprender mais e mais...
_ Para mim, parece perfeito demais, Rebeca, é tudo tão certo, tão perfeito, tão exato, para cada atitude há uma resposta exata, para cada gesto, há o ritual correto, e não há nada mais para inventar, para criar, para superar os nossos próprios limites, tudo é tão perfeito... a perfeição é tão monótona!
_ E daí, Tomás? Ninguém tem doenças, nem é assassinado, nem sofre violências, nem sente fome ou sede ou frio, todos os seres humanos vivem confortavelmente em residências ideais, o mundo é o melhor possível.
_ Mas eu sinto que alguma coisa está errada e vou continuar minhas pesquisas. Mas o que eu queria pedir-lhe quando vim conversar é que não aborte esta criança, queria que você a tivesse ou a entregasse para uma incubadora, gostaria de criá-la, como se criavam filhos nos séculos passados. Acredite, eu fui criado pela minha mãe e é diferente...
_ Você já me contou esta história. Com certeza, isso deve ser responsável pelo seu jeito. Bem, vou pensar no que você quer, acredito que aceitarei sua proposta, afinal, não quero problemas judiciais, porque gosto de você.
_ Preciso contar-lhe mais uma coisa.
_ Tem mais?
_ Sim, quando eu nasci, minha mãe impediu que o governo instalasse o cerétalo em mim, eu vivi até os meus sete anos sem o cerétalo, aprendendo o que ela me ensinava. Foi uma experiência tão única, por isso que eu queria voltar a viver sem ele, você não imagina como funciona o cérebro sem ele.
_ Estou surpresa, como ela conseguiu escapar do governo central?
_ Não sei, sei que ela conseguiu e só aos sete anos que recebi o implante do cerétalo, tanto que o meu cérebro estava completamente formado, lembro-me da operação até hoje.
_ Tem mais surpresas.
_ Por enquanto, apenas estas, abusei demais de você, hoje, há mais algumas coisas pequenas, mas não quero falar mais nada, preciso pensar mais um pouco... sem o cerétalo.
Tomás saiu do recinto e foi cuidar do seu trabalho e do estudo que fazia. Após alguns dias, Rebeca comunicou-lhe que enviaria o feto para uma incubadora na Cidade de Marte, capital do planeta, isto não satisfez por completo o sonho de Tomás de ver primeira criança a nascer de parto naturall no planeta Marte. Seria a primeira e talvez a única se ele convencesse Rebeca, mas deixaria esta tarefa para outra hora, ocupava-se de suas experiências com a fórmula que criara para desligar e ligar o cerétalo.
Numa manhã, alguns meses depois de descobrir a fórmula de desligar o cerétalo, e alguns dias após aquela conversa inicial com Rebeca, um grupo de soldados de Marte aportou na fazenda do casal. Rebeca assustou-se quando eles entraram, havia tantos anos que ela não via um, achava até que não existissem mais, pois não havia mais crimes ou guerras no mundo. Eles estavam à procura de Tomás que, monitorando os acontecimentos da casa através do seu cerétalo em conexão mental com Rebeca e com os aparelhos domésticos, soube dos acontecimentos, mesmo assim, dirigiu-se à presença daqueles soldados, dois homens e duas mulheres, para inteirar-se da situação.
O tamanho dos soldados impressionava, homens de dois metros e trinta centímetros, e mulheres, com no mínimo dois metros, enquanto a altura média da humanidade era de um metro e oitenta centímetros. A engenharia genética fez com que as pessoas ficassem mais altas e a altura tinha relação direta com a profissão escolhida, nem mesmo atletas podiam ser superiores aos soldados, essa era a lei, parece que o porte físico prevaleceu como uma tradição do passado, quando se tratava de forças armadas.
_ Senhor Tomás Magril, queira acompanhar-nos, por favor!
_ Somente após saber o que vos trouxe aqui e após vós mostrardes a ordem judicial...
_ Pois sim! – Um dos policiais transmitiu mentalmente para Tomás a cópia da ordem judicial.
_ Sim, está correta! Portanto, se sou uma pessoa perigosa e devo passar um período de reeducação, levem-me.
_ Obrigado por não oferecer resistência.
Rebeca não conseguia compreender, por que levariam Tomás? Ele era criminoso? Que crime cometera? Tentou conectar-se com os soldados, mas eles não estavam ligados a ela, tentou o Tomás e este lhe informou que ele fora solicitado pelo governo central, para que passasse um período em reeducação social e, além disso, deveria esclarecer a fórmula matemática que criara para desligar o próprio cerétalo.
_ Adeus, Rebeca! Se você puder e se eu demorar muito mais do que um ano, cuide do nosso filho, conte-lhe sobre mim! E tem mais, amo você, Rebeca!
_ Não seja trágico, Tomás, em breve você estará de volta.
_ Receio que não, adeus!
Tomás abraçou-a. Chorou. Ela não compreendia. Chorou também, não queria soltá-lo, tantos anos juntos.
Rebeca sabia que tudo aquilo tinha a ver com a fórmula que ele inventara. Será que era tão perigosa assim? Ela não podia compreender porque alguém iria querer desligar o próprio cerétalo, ou porque levariam o Tomás se ele estava aqui trabalhando corretamente e, sempre que ela quisesse podia contatá-lo mentalmente... mas ela se lembrou que, depois da fórmula, nem sempre ela conseguia contato mental imediato, ela sabia que ele estava com o cerétalo desligado, mas não conseguia ver mal algum nisso!
Tomás entrou no veículo do exército acompanhado dos soldados. Seria esta a última vez que Rebeca o veria pelos próximos trinta anos. A nave militar alçou vôo e Tomás observou a fazenda onde morara tantos anos se distanciar. Pensava apenas que deixara a mulher que amava e que, provavelmente, nunca veria o filho que nasceria.
Capítulo 2
IOSEF BIRON
Muitos anos depois, Rebeca ouviu alguém batendo palmas e isso era totalmente estranho e incomum, ninguém fazia isso porque todos se comunicavam pelo cerétalo e se anunciavam muito antes de chegar à residência de outra pessoa. Ela abriu a porta e um homem alto, de rosto conhecido, mas muito jovem, talvez ainda não tivesse trinta anos, estava à sua frente, ela o olhou e parecia conhecê-lo, mas não sabia realmente quem era ele, não se lembrava se o vira antes apesar da sensação de que o conhecia. Ele lhe perguntou:
_ Você é Rebeca de Morneau?
_ Sim, você me conhece?
_ Não. É a primeira vez que a vejo. Vim para visitá-la, conhecê-la e matar minha curiosidade.
_ Entre, por favor, senhor...
_ Iosef Biron.
_ Sente-se!
_ Obrigado.
O homem acomodou-se no sofá da sala da casa de Rebeca e olhava tudo com grande interesse, a casa ampla deixava entrar a fraca luz solar incidente em Marte naquele horário, ele olhava com curiosidade aquela mulher extremamente branca, de cabelos castanhos e olhos azuis, como ele nunca havia visto antes em Marte.
_ Perdoe-me o atrevimento, mas a cor de seus olhos é natural, senhora?
_ Desde que nasci, senhor Biron, a que devo esta visita?
_ À minha curiosidade e a um homem chamado Tomás Magril.
Houve um choque inicial, mas ela se conteve, há mais de trinta anos que ela não ouvia alguém falar nele, desde aquela vez em que os soldados do governo o levaram, ele fazia tanta falta e ela ainda sentia muita saudade do ex-companheiro, ficou curiosa.
_ Há quanto tempo não tenho contato com Tomás, o que lhe aconteceu? Tentei encontrar notícias dele nos jornais do sistema solar inteiro, tentei contatá-lo pessoalmente e não obtive resultado.
_ Acredito que Tomás está preso na Terra desde que saiu daqui.
_ Preso na Terra? Como assim? Qual acusação? É possível visitá-lo?
_ Eu também me perguntei dezenas de vezes tudo isto, não tenho respostas e pelo que sei, está praticamente incomunicável, ou melhor, nós não podemos nos comunicar com ele, mas ele pode nos enviar mensagens.
_ Como o senhor soube dele? E como você conseguiu falar com ele?
_ Eu não falo com ele, ele é que fala comigo sempre, envia-me mensagens codificadas, eu as transcrevo, em uma delas, disse que deveria vir até a sua casa e lhe pedir autorização para visitar o quarto dele.
_ Curioso, e quem é você para pensar que pode fazer isso?
_ Ele me disse que sou o filho dele e da senhora.
Rebeca teve um choque maior desta vez, e só não desfaleceu porque o cerétalo leu as modificações químicas no seu organismo e tratou de auxiliar o corpo nas defesas físicas para aquela emoção forte. Algo estranho aconteceu e mexeu com ela. Entendeu porque aquele rosto era conhecido, era o mesmo rosto de Tomás Magril, só que mais jovem, muito mais jovem, cento e cinqüenta anos mais jovem, mas era de cor mais clara, e era filho dela, um homem, uma estranha sensação lhe percorreu. Ela esperou um pouco até seu corpo se recompor e, através do contato telepático, ela confirmou toda a história, era o mesmo registro gravado no cerétalo dele que ela possuía como o do filho entregue ao governo central. Um impulso e uma emoção forte e selvagem, como nunca sentira antes, impeliu-a a abraçá-lo.
_ Meu filho!
Por um momento, quis ouvir uma antiga palavra: “mãe”, mas, em vez disso, permaneceu à sua frente e ouviu:
_ As mensagens que recebo falam-me de um documento antigo guardado num móvel antigo chamado de escrivaninha.
Rebeca retornou a si. Soltou-o.
_ Desculpe-me, não sei o que me ocorreu.
Depois continuou:
_ Não há documentos antigos em casa! Em todo caso, podemos ir ao quarto de Tomás e ver o que tem, faz anos que não mexo em nada lá, no começo, esperava que voltasse logo, depois, cansei de esperar, e, como as máquinas fazem toda a limpeza, não me preocupei em voltar ao seu quarto, temos muitos afazeres aqui na fazenda.
_ Penso que o trabalho aqui é maior do que nas cidades.
_ Talvez, aceita um café?
_ Sim.
Em pouco tempo, um criado-robô trouxe café.
_ Iosef, conte-me sobre você, sempre desejei saber o que lhe aconteceu, como você cresceu, como foi sua vida, o que você faz, estas coisas!
_ Poderíamos, antes, olhar o quarto de Tomás? Ele me pediu que fosse a primeira coisa que eu fizesse.
_ Claro, vamos até lá, acompanhe-me.
Rebeca o levou até o quarto de Tomás, que permanecia o mesmo. Apenas uma cama, um armário em que as roupas eram guardadas, uma prancha suspensa em que havia alguns objetos pessoais. Diariamente, o criado robô efetuava a limpeza. Iosef recordava das palavras que recebeu e procurava com o olhar alguma coisa, observou atentamente.
_ O que ele me pediu para encontrar, não conheço, talvez a senhora me ajude, Tomás costumava usar papel para escrever?
_ Papel? Era umas das paixões dele, há seiscentos anos que ninguém mais usa papel. Ele fazia anotações a lápis ou caneta, Tomás possuía alguns destes objetos antigos e escreveu alguma coisa a caneta, Nunca lhe dei tanta importância porque escrever à lápis ou caneta é tão rudimentar e impossível, que não dava crédito a isto.
Rebeca retirou do armário alguns papéis repletos de anotações manuscritas, entregando-as a Iosef. Ele olhou aqueles papéis e não compreendia aqueles códigos utilizados por Tomás, mas se esforçaria para saber o que continham de importante.
_ Eu poderia ficar com estes papéis?
_ Claro, se foi Tomás quem lhe pediu que viesse buscá-los. Venha, vamos continuar o café, gostaria que me falasse um pouco mais de você, estou muito curiosa, devo ser a primeira mulher humana a ver o próprio filho em décadas.
_ Para dizer a verdade, há mais de um século que uma pessoa não vê seu filho e que um filho não vê a própria mãe.
Rebeca pediu ao robô que lhe trouxessem mais café, sentaram-se na sala e Iosef contou sua história.
_ Não há muito o que contar de mim, senhora, como sabe, nasci na incubadora na Cidade de Marte, fui educado com as outras crianças de minha idade, cresci na Escola Integral, igual a todas as crianças, depois fui para a faculdade, onde cursei Engenharia Climática e Administração, o governo providenciou o meu emprego na Controladoria Climática de Marte, trabalho lá, curto muito os Centros Integrados de Marte, conheço todos, gosto de ir ao cinema e teatro, minha vida é muito comum, igual a de todos os marcianos que conheço.
_ Era isto uma das coisas que Tomás falava, que todos pareciam viver a mesma vida sempre e que ninguém se preocupava mais com isso, ele falava que o mundo era mais interessante há dez séculos atrás.
_ Ele falava isso?
_ Falava, e você disse que recebe mensagens dele?
_ Ah! Eu ia falar-lhe sobre isso, um dia, eu estava em casa, descansando, quando comecei a ouvir uma voz na minha cabeça, era estranho, não parecia ser uma transmissão normal do cerétalo. Se não me engano, eu já estava morando no apartamento novo, acho que foi há uns dois ou três anos atrás, até pedi para o meu companheiro de apartamento verificar se ele ouvia alguma coisa, mas ele não ouvia nada, era só na minha cabeça. No começo, achei que fosse algum mau funcionamento do meu cerétalo, procurei um médico e tudo estava perfeito. Depois a voz se identificou como Tomás Magril, eu pesquisei nos arquivos marcianos e não encontrei o nome dele como residente aqui no planeta, pesquisei nos arquivos da Terra e não encontrei nada, o pior é que eu não posso entrar em contato com ele, não há esta possibilidade. O cerétalo dele permanece incomunicável.
Até que um dia ele me contou a sua história e me disse que eu era o último humano gerado a partir de uma combinação não programada pelo governo central, e que, por isso, eu era diferente dos outros humanos. Chequei novamente a sua existência em períodos mais antigos e a encontrei aqui em Marte e comecei a acreditar no que ele falava. Tomás continuava mandando mensagens e me disse para vir aqui.
Iosef fez uma pausa, sorveu um gole de café.
_ E agora estou aqui, vou aproveitar minhas férias para tentar encontrar Tomás Magril, estou a caminho da Terra, e, antes, passei aqui para saber se a história do meu nascimento é verdadeira.
_ E é verdadeira... – Rebeca lembrou-se de tempos antigos - e talvez eu devesse tê-lo educado aqui na fazenda... Agora entendo um pouco o que os muito antigos falavam de uma sociedade em que existiam famílias... pai, mãe e filhos.
_ Se me permitir, posso chamá-la de mãe?
_ Fico alegre com isso, também posso chamá-lo de filho?
_ Aceito com satisfação. Talvez eu seja o único marciano que tem mãe e você a única a ter um filho.
_ Quando você parte para a Terra?
_ Pensava em tomar uma das naves que saem nesta noite, precisamos de uns dias de viagem até lá, estou um pouco apreensivo...
_ Fique até o jantar pelo menos, há anos que não tenho companhia humana, apenas os robôs e os andróides, eles são idênticos a nós, mas um ser humano é sempre um ser humano.
Iosef ficou e ambos passaram a tarde e o jantar conversando sobre Tomás Magril, sobre Marte, Terra e outros lugares onde o homem estava colonizando, falaram de filmes e teatro e uma boa amizade se estabeleceu ali, um resquício do que antigamente chamou-se família.
À noite, Iosef subiu em seu carro e partiu. Ela pensou no que poderia ter de tão importante naqueles papéis para que ele viesse até aquela fazenda nos confins de Marte buscar e levar para um homem preso na Terra, quase incomunicável com o resto do sistema solar.
O carro de Iosef deslizou pelas estradas rurais de Marte, à sua volta, grandes plantações destinadas a sustentar a população humana. Ao longe o brilho da cidade de Marte começou a aparecer e, em pouco tempo ele estava no aeroporto, pronto para embarcar.
Sentou-se numa das poltronas da sala de espera e ficou pensando em Rebeca, não conseguia acreditar em como se afeiçoara tão fácil e rapidamente àquela mulher e em como fôra tão simples chamá-la de mãe, e o conceito de mãe estabeleceu-se em seu coração, ao deixar a emoção de conhecer a própria mãe tomar conta de sua mente, uma lágrima de tristeza rolou de seus olhos pela partida, pois desejou ficar ao lado dela, não querendo partir, quase começou a chorar, Iosef levantou-se e foi ao toalete, olhou no espelho aquela lágrima que rolara e que ainda estava escorrendo pelo rosto e viu que a sua expressão facial estava modificada, em pouco tempo o cerétalo regulou suas funções psíquicas e hormonais e ele voltou a ter a mesma expressão comum das pessoas que estavam à sua volta.
Tentou compreender isso e prestou atenção nos rostos do aeroporto e percebeu que não havia ninguém com aquela expressão de pesar que ele acabara de ver em si mesmo no espelho. Todos tinham uma expressão semelhante, algumas demonstravam alegria ou felicidade e ninguém possuía a expressão que tivera.
Lembrou-se de Tomás e evitou olhar as folhas de anotações, pois, em suas mensagens, ele lhe pedia que levasse embora e não olhasse para as anotações, pois elas seriam automaticamente inseridas no cerétalo e poderiam ser compreendidas por outras pessoas. Iosef não entendia, já que era crime alguém conhecer o conteúdo do cerétalo alheio sem autorização para tal. E todo o sistema do bio-computador era impenetrável, somente o seu portador conhecia o seu conteúdo e, mesmo nas ligações telepáticas, havia uma separação entre o que era permitido conhecer e o que era de acesso exclusivo para o portador e Tomás sempre insistiu que não queria que a informação estivesse nem mesmo neste acesso exclusivo. Iosef sentia-se curioso porque era a coisa mais interessante que estava fazendo em toda a sua curta existência, onde percebera que o mundo era extremamente exato e perfeito e tedioso.
Iosef subiu na nave que o levaria para a Terra, antes fariam uma escala na Lua. Depois que todos entraram, o veículo foi totalmente lacrado, o comandante manobrou pela pista e subiu. As primeiras horas do vôo eram as mais perigosas, mas a atmosfera marciana era de fácil penetração e, em poucos minutos conquistaram o espaço. Pela janela, Iosef podia ver o planeta vermelho ficando para trás e apenas a negritude do espaço a frente com o Sol brilhando soberano e enorme.
A viagem levaria setenta e duas horas terrestres, cada passageiro da nave se acomodava em uma cabine individual, a enorme nave possuía acomodações para quinhentos viajantes, além de levar a carga e muita mercadoria comercializada entre os dois planetas, possuía um bom restaurante, onde os turistas e comerciantes se encontravam.
As luzes e a grande área envidraçada do restaurante, de onde se avistavam as estrelas, convidavam os passageiros a uma viagem alegre, também porque aquele espaço se misturava a um cassino, viam-se os passageiros se divertindo, Iosef também gostava daquele clima de diversão e participou, fazendo alguns amigos e se divertindo enquanto esperava a hora de chegar a Terra.
Após setenta e duas horas de viagem, chegaram finalmente ao satélite terrestre, haveria uma parada de duas horas. Iosef desceu da nave para caminhar pela estação espacial lunar, de onde se podia avistar a Terra, e a imagem daquele planeta preencheu os seus olhos anestesiando-o por alguns instantes. O planeta azul, quase todo formado de água, repleto de oceanos. A Terra era uma visão linda e apaixonante, um pouco de uma alma poética associada a uma história humana de mais de dez mil anos e mil anos de viagens espaciais. Para qualquer ser humano era impossível não pensar na Terra com um jeito especial, mesmo para aqueles nascidos em Marte ou em algumas das luas de Júpiter, chegar na Terra era um momento sempre único, era como ir ao centro de todo o universo, como retornar ao ano mil e quinhentos e ter a certeza de que o Sol girava em torno dela. Todo o sistema solar habitado existia em função da Terra: Marte produzia alimentos, as luas de Júpiter produziam minérios, do Sol se retirava energia. Tudo girava em função da Terra.
Obviamente, ele sabia em seu íntimo que tudo acontecia em função dos humanos, mas a Terra é o berço da humanidade e passava a sensação de fazer o mundo girar em torno dela e de seus mistérios.
E, mesmo assim, ir a Terra era como descer no passado da humanidade, com aquelas cidades de construções com três mil anos ou mais, e, dependendo de onde se fosse aterrissar, ver-se-ia as pirâmides egípcias, construções magníficas de mais de cinco mil anos. Iosef custava a crer na capacidade humana que as construiu.
Difícil mesmo para quem vinha de fora era suportar o comportamento de muitos terráqueos e entender os vários idiomas que falavam. Desde que o sino-saxão, uma mistura das antigas línguas inglês e chinês, tornara-se a língua universal e primeira língua de todos os terráqueos, a partir do século vinte e seis, quatro séculos antes, a antiga China superou todos os outros países em importância. Tornou-se a grande potência do mundo e se superara todos na corrida espacial ao iniciar a exploração comercial de minérios em Marte, que, fora da Terra, ninguém mais falava em dialeto.
Mas os terráqueos insistiam em falar nos dialetos de seus locais de origem, reduzidos há pouco mais de trinta, entre eles o inglês e o chinês, que eram fáceis para um extra-terreno entender e falar, mas quando se ouvia o francês, o italiano, o indiano, o português, o espanhol e o árabe era impossível para os de fora compreender, mesmo que o cerétalo armazenasse as palavras destas línguas, custava algum tempo para o visitante compreender, do que se aproveitavam os terráqueos para fazer piadas e brincadeiras com os de fora, hábito muito mal visto, herdado dos antigos.
Dali da Lua, também se avistava a Sky Tower, a grande torre espacial construída no século vinte e três, exclusivamente para reduzir o consumo de energia e tempo entre as viagens lunares. Estendia-se por trinta quilômetros de cada lado de sua base quadrada, enterrada dois quilômetros abaixo da terra e com cento e quarenta e dois quilômetros de altura, abrigava grandes elevadores com a finalidade de levar gente e carga até a estação espacial Mir, a maior já construída. A torre era dotada de vários níveis, o deslocamento de pessoas e animais era feito em veículos pressurizados. Aquele era o meio mais barato de se atingir o espaço, mais de seis milhões de terrestres utilizavam a torre diariamente com a finalidade de tomar os ônibus espaciais que levavam à Lua, a Marte, a Júpiter ou a algumas das outras estações espaciais que polvilhavam pelo sistema solar. Dentro da torre existiam hotéis, comércio, serviços dos mais variados e até algumas indústrias que supriam as necessidades das pessoas e das empresas que circulavam. Era um mundo à parte, dotado de regras especiais. Foi construída na África, sobre as montanhas Atlas, pois era um ponto neutro entre as duas potências mundiais do século vinte e três, os Estados Unidos e a China, pois ambos precisavam de um meio mais econômico de ligar a Terra a Marte, cuja colonização estendia-se desde o século vinte e um.
Depois que todos os passageiros retornaram à nave, esta partiu para a última escala: Terra. Algumas horas depois, Iosef podia sentir uma forte emoção com a aproximação, avistar o contorno dos continentes surgindo dentre as massas de nuvens brancas sob um mar azul o excitava. Deslumbrava-o, tamanha era a beleza. Uma sensação de beleza incomensurável, inimaginável, inigualável.
Após pousar na torre, a nave manobrou até um dos hangares disponíveis, a enorme porta do hangar fechou-se, o ambiente foi pressurizado e, em poucos minutos, os passageiros desceram da nave até o salão totalmente isolado. Fizeram triagem de rotina, retiraram suas malas e se dirigiram aos milhares de elevadores que serviam para descer até o chão, gastava-se pelo menos cinco horas na descida, pela necessidade de despressurização e adaptação gradual aos níveis de oxigênio terrestres, as pessoas iam sentadas em poltronas onde era possível dormir durante todo o trajeto.
Muitos desciam na estação aérea que se situava a dez quilômetros de altura na torre, em relação ao nível do mar terrestre, e tomavam o avião para os seus destinos, foi o que fez Iosef.
Quando o imenso avião saiu da Sky Tower, a luz do Sol no horizonte era extremamente forte para um marciano acostumado a iluminação solar do seu planeta. O céu azul e tantas nuances de outras cores, além da grande quantidade de nuvens, eram incomuns para Iosef e tantos outros marcianos que visitavam a Terra pela primeira vez, comentavam e exclamavam entre si tal beleza.
Para Iosef, a viagem já teria valido a pena pelo pouco que vira até então, mas lhe passavam outras coisas pela cabeça, queria encontrar Tomás.