Capítulo 5
Iosef retornou ao seu trabalho de analista dos sistemas pluviais de Marte, em que, junto com a sua equipe, decidia quais os locais em que deveria haver maior precipitação chuvosa. O tempo em Marte fora construído pelo homem que aprendeu a controlá-lo.
De manhã, ele recebeu algumas informações no seu computador de trabalho, que era separado do acesso ao cerétalo, por uma questão de segurança, pois as empresas temiam cópias ilegais dos seus arquivos. Ainda que fossem praticamente impossíveis. Mesmo que alguém tentasse, não conseguiria copiar um arquivo do computador da empresa porque tanto este quanto o cerétalo possuíam arquivos de segurança que impediriam esta cópia.
Após uma hora de análise, dirigiu-se à sala de reuniões, da mesma forma que os outros integrantes da sua equipe e discutiram, dentro da sua província, quais as regiões que mais necessitavam de chuva de acordo com o plano anual de produção de alimentos em Marte. A equipe de Iosef era formada por Tahal, Niganda, Naabor e Fátima. Encontraram-se, discutiram por mais de uma hora sobre as necessidades daquele dia, concluíram que as regiões da cratera de Mare Lazul receberiam a quantidade de chuva adicional para a produção de tomates porque os técnicos de solo haviam constatado deficiência hídrica naquela região. Tomada a decisão, passaram-na para o setor de realização e encerraram os trabalhos daquele dia. Niganda aproximou-se de Iosef após a reunião:
_ Conte-nos, Iosef, como foi a sua visita à Terra!
_ Foi muito interessante! Com certeza, a Terra é realmente o planeta mais interessante que existe. Por mais que saibamos tudo a respeito dela, quando a visitamos, é que sentimos o peso da atmosfera e a beleza do planeta.
_ Ainda não visitei a Terra, espero ir para lá nas minhas próximas férias.
_ Você vai gostar muito, Niganda, ainda mais você, que gosta de artes plásticas, verá que o azul do céu é inebriante. Tome cuidado apenas com as brincadeiras dos terrestres, que falam línguas diversas e ficam nos confundindo.
Mas, enquanto conversava com Niganda, Iosef a olhava e tentava ver nela traços que a identificassem. Durante a reunião, observou bem as pessoas que estavam com ele e também outras que trabalham na empresa, que andavam pelas ruas marcianas, que vieram com ele no ônibus espacial.
_ Iosef!
_ Ãh?
_ Você parece estar desligado, estou perguntando do peso da atmosfera da Terra!
_ Desculpe, Niganda, acho que me desliguei temporariamente. Sim, sim... o peso da atmosfera terrestre é forte, tive dificuldades para caminhar nas primeiras horas, perdi o fôlego, depois que o cerétalo me adaptou, foi tudo bem, mas não me comparei com os terrestres, não é por acaso que os atletas vivem lá e treinam lá. Com a força da gravidade! Niganda, posso perguntar-lhe uma coisa?
_ Sim.
_ Como você sabe que eu sou o Iosef e não o Tahal?
_ Que pergunta tola! Pelo seu rosto e pela sua identificação do cerétalo.
_ É isto que eu estava pensando...
_ O que?
_ Veja bem, nós dois somos quase iguais, mas eu sou homem e você, mulher, o que nos diferencia, mas temos praticamente a mesma altura, eu sou apenas três centímetros menor que você, o Tahal é da sua altura, nós temos cores semelhantes de pele, cabelos e olhos, mudam apenas as tonalidades, claro que cada um usa a cor de cabelo e de olhos que quer, há diversas substâncias que alteram estas cores no mercado de cosméticos, basta uma cápsula e pronto. Mas, originalmente, somos quase todos iguais, não é curioso?
_ Não. Para mim é normal, o que lhe aconteceu na Terra para você vir com estas idéias malucas? Lá por acaso há pessoas diferentes de nós?
_ Sim. Quer dizer, há diferenças, no geral, não são iguais a nós. Existe uma diversidade surpreendente. Dizem que guardam heranças dos povos que habitaram cada região. Nós somos fabricados em grandes berçários humanos. É isto que me deixa curioso.
_ Deixa para lá, Iosef. Olha, porque a gente não almoça junto e vamos à tarde ao clube jogar tênis?
_ Boa idéia. Vamos ao clube.
O clube daquela pequena cidade marciana era o ponto de encontro das pessoas, que ali faziam seu passeio, praticavam esportes, apresentavam seus trabalhos artísticos, peças de teatro, mostras musicais e outras atividades. Quase todas as pessoas da cidade passavam por lá quase todos os dias, antes ou depois do horário de trabalho.
O local era amplo, mais de quinhentos mil metros quadrados, possuía lojas, piscinas, campos para esportes, restaurantes, cinemas, teatros e palcos. Um espaço público copiado dos clubes terrestres dedicado à diversão e ao lazer dos humanos, em geral, cada cidade possuía um clube, mas, quanto maior fosse a cidade, maior a quantidade e o tamanho dos clubes existentes.
Iosef lembrou-se dos ensinamentos de Tomás Magril e, ao lado de Niganda, começou a olhar para as pessoas que freqüentavam o clube, percebeu que, apesar das pequenas diferenças fisionômicas, os humanos de Marte eram extremamente semelhantes, eram de uma cor marrom bem claro, de cabelos lisos e marrons claros, em geral da mesma altura, corpos esbeltos, não havia diferenças significativas no desenho de um humano. Tentou lembrar-se das pessoas da Terra e lá havia muito mais diversidade, seu cérebro funcionava, ele sentia que não era tão comum assim, consultou o cerétalo para saber de coisas de mais de mil anos atrás, e nos arquivos haviam fotos e filmes dos humanos antigos, havia uma variedade maior de tipos físicos, altos, baixos, magros, gordos, loiros, ruivos, brancos, negros, começou a fazer uma pesquisa histórica sobre o assunto, enquanto dirigia-se à piscina na companhia de Niganda.
Ambos deixaram suas roupas no vestiário, um robô classificou a roupa de cada um sem necessidade de identificação, pois esta era feita pelo código de acesso do cerétalo, as roupas seguiram para lavagem, secagem e empacotamento, quinze minutos depois estariam disponíveis, bastaria que eles chegassem e o robô, automaticamente, pegaria o pacote com a classificação deles e o entregaria, nunca havia erro neste processo. Eles foram nus tomar banho na piscina, quando Iosef falou para Niganda:
_ Foi em dois mil seiscentos e cinqüenta e três.
_ O que foi em dois mil seiscentos e cinqüenta e três, Iosef?
_ Foi nesta data que cinqüenta e um por cento da população humana aqui em Marte passou a ter o tipo físico que temos hoje, Niganda.
_ Como? E daí?
_ Nada, só estou pensando em alguma coisa diferente. Antigamente, as pessoas eram brancas ou negras, tinham cabelos pretos, marrons, amarelos, olhos pretos, marrons, azuis, verdes e várias outras misturas, havia pessoas de um metro e cinqüenta e outras de dois metros e dez. Hoje, a maioria de nós tem esta cor marrom claro, olhos e cabelos marrons claros, somos muito mais semelhantes entre nós do que os humanos há mil anos atrás.
_ Quanta importância tem isso, Iosef! Não consigo compreender onde você quer chegar. Aliás, seus cabelos não são marrons, são pretos e seus olhos também não são marrons, são pretos, você é um pouco diferente da maioria. E sua pele é bem diferente.
_ Na Terra vi muitas e aqui em Marte, acho que eu vi uma ou outra pessoa extremamente branca, ou muito negra, foi tão raro! Lá ainda existem pessoas diferentes, aliás, Tomás Magril tem cabelos pretos, olhos pretos e pele escura e isto me chamou a atenção, Rebeca de Morneau é muito branca e de cabelos marrons e de olhos azuis, ambos são diferentes da maioria dos humanos.
_ E quem são estas pessoas? E você também é diferente da maioria, Iosef, mas é um humano assim mesmo, apesar de suas idéias. O que aconteceu? Antes de viajar para a Terra, eu nunca o tinha visto com este olhar vago, perdido no horizonte, tendo idéias! A vida não foi feita para isto, estamos aqui para participar da arte, divertir-nos e usar o que o mundo tem de melhor.
_ Talvez você tenha razão, vamos curtir e aproveitar o sol.
Iosef não quis mais discutir estes assuntos com Niganda, ficando até mais tarde no clube, haveria uma mostra musical de ritmos antigos marcianos. Durante a mostra, ele olhava as pessoas e tentava entender o que faziam ali, o que estavam ganhando em sua vida, o que as atraía e as mantinha tão felizes e despreocupados, pensava que havia uma série de perguntas que começavam a ficar sem resposta para ele, que sentia, cada vez mais, vontade de conversar com Tomás e Rena. Talvez eles tivessem respostas. Usar o cérebro começava a deixá-lo preocupado, perguntas demais lhe vinham à cabeça, onde estavam as respostas? Quando ele não se preocupava e deixava que o cerétalo tomasse conta de suas decisões, as coisas fluíam de maneira mais simples e perfeita.
Quando a noite marciana chegou, Iosef estava sozinho e começou a perceber a quantidade de luz e cores diferentes que animava o Clube de Marte. O som dos músicos o contagiava, desligou o cerétalo e se ateve a aquilo, olhava as pessoas à sua volta, todos inebriados por tudo aquilo, dançando e acompanhando os ritmos e, pela primeira vez, não sentiu vontade de fazer o mesmo que os outros faziam porque algo lhe fazia falta. Com o cerétalo desligado não conseguia interessar-se pelo que os músicos cantavam, e nem compreendia o significado da maioria das frases cantadas, apesar de entender todas aquelas palavras.
Então, começou a caminhar no meio da multidão dançante e tentava encontrar um rosto que estivesse preocupado com alguma coisa, um rosto que lhe dissesse que o mundo não era perfeito e que havia alguma coisa errada.
Não havia ninguém. E quem não estava dançando divertia-se de outra maneira, havia teatro, cinema, jogos eletrônicos, cabines individuais de diversão, cabines para casais que quisessem fazer sexo.
E lhe passou por um instante uma sensação de inutilidade perante o mundo e de vontade de encontrar um sentido para a sua própria vida, que não poderia ser aquilo, a humanidade havia chegado ao mais alto grau de desenvolvimento para isso?
Era o prazer. A entrega total ao prazer. Era isso, compreendeu. Todos se entregavam totalmente ao prazer uns com os outros. Aos prazeres sensoriais. A todo tido de prazer.
E, naquele momento, ele mesmo, não conseguia sentir prazer algum em estar ali.
Retirou-se para o seu apartamento e, pela primeira vez, percebeu que aquela vida não lhe dava mais prazer.
Capítulo 6
UM QUESTIONAMENTO
No dia seguinte, ao analisar os dados dos índices pluviométricos e de evaporação do solo marciano coletados pelas sondas, Iosef compreendeu que naquele dia seria melhor que a chuva fosse de quarenta milímetros na região de Tróia. Levou isto para os seus colegas analistas.
_ Não, Iosef, você está errado, veja, precisamos de mais batatas Le Gran, por isso, a chuva deve cair em Nacaz. – disse Naabor, concordando com ele os outros três técnicos.
_ Nós já temos bastantes batatas Le Gran, precisamos de mais milho e soja, pois os estoques de ração animal baixaram. – argumentou Iosef – Os estoques de batatas são suficientes para um ano.
A discussão sobre a região que mais precisava de chuva foi um desastre. Nunca antes houvera uma discordância tão grande entre os técnicos, no entanto, a maioria votou em chuva em Nacaz e não em Tróia, Iosef ficou indignado. Ele sabia que Tróia precisava de chuva pela análise dos dados, era mais do que um saber. Era uma sensação, um sentimento, uma intuição. Ele estudou os índices sem o cerétalo e sabia que estava certo.
_ Estou achando que a viagem a Terra não lhe fez bem, mesmo! – afirmou Niganda – Você está com idéias diferentes, está óbvio para todos nós que Nacaz precisa de água, como você não compreende isto?
_ Desculpe, Niganda, estou tentando compreender alguma coisa! Preciso pensar e, portanto, ficarei em casa, hoje eu não irei ao clube.
_ Você está ficando estranho, Iosef! – comentou Fátima.
Em casa, através do cerétalo, Iosef tentou contatar o escritório da agricultura de Tróia, um técnico, de nome André, conversou com ele e confirmou que a produção de milho e soja da região estava no limite de água, mais alguns dias e poderia haver um comprometimento. Depois ele conversou com um técnico de Nacaz e este confirmou que a safra de batatas Le Gran daquele ano seria uma das maiores e estava muito satisfeito com o trabalho do Escritório Central de Agricultura de Marte.
Iosef agradeceu todas as respostas dos técnicos e se desligou deles. Continuou sentado no sofá da sua sala. Através do cerétalo começou a fazer um exercício mental de pesquisa das informações do comércio de batatas e de milho e soja, queria saber mais, para onde iam, quem os utilizava. Descobriu uma série de estatísticas a respeito, e estava tendo dificuldade de analisá-las, tentou contatar Tomás Magril que se encontrava na Terra, os contatos diretos com a Terra através do cerétalo eram muito mais difíceis por causa da distância e da interferência que as ondas de rádio sofriam, conseguiu apenas deixar mensagens para Tomás. Lembrou-se de Rebeca e decidiu visitá-la.
Rebeca de Morneau via-se novamente com Iosef Biron a sua frente. Como era esta a segunda visita daquele rapaz, ela sentiu-se mais a vontade com ele ao recebê-lo em sua sala, com o pequeno robô que trazia o café.
_ Você parece um tanto preocupado! Esteve na Terra? Conversou com Tomás Magril?
_ Sim, Rebeca, ele está morando lá, mas não está preso, é um homem livre, cumpriu uma pena reeducadora.
_ Ele não voltou para Marte...
_ Está envolto em pesquisas na Terra.
_ A, o velho Tomás, sempre atrás de estudos e mais estudos, a mente dele não sossega, diga-me, ele tem alguma companheira lá?
_ Sim, chama-se Rena.
Rebeca ficou um pouco triste com a notícia, mas não se abalou. As pessoas podiam ficar com quem quisessem e pelo tempo que quisessem.
_ O que me trouxe aqui é a plantação de milho que você faz, como será a produção este ano? E as chuvas? São suficientes?
_ Este ano há poucas chuvas, já conversei com o escritório central de agricultura e eles nos prometeram resolver isto, mas até agora, não obtivemos a chuva.
_ Eu sei, eu sou um dos técnicos de agricultura. Discutíamos isto hoje e eu queria confirmar. Vejo que vocês estão precisando de chuva aqui. Eu falei isso, mas a decisão até o fim do mês foi de concentrar os esforços na região de Nacaz. E quanto você está produzindo aqui?
_ Na nossa fazenda produzimos doze milhões de toneladas por ano. Marte produz seiscentos milhões de toneladas de milho.
_ Tomás alguma vez falou sobre esta produção e sobre o consumo aqui em Marte?
_ Sim, ele costumava discutir estes assuntos comigo.
_ O que ele lhe dizia, exatamente.
Rebeca consultou em seu cerétalo as conversas que teve com Tomás.
_ Dizia que a produção de grãos é exagerada, que Marte consome duzentos milhões de toneladas de grãos por ano e produz treze bilhões, a Terra consome dez bilhões de toneladas e produz apenas dois bilhões, que as luas de Júpiter consomem pouco mais de trinta milhões de toneladas e, portanto...
_ Sobram mais de cinco bilhões de toneladas de grãos todo ano!
_ Exatamente, isto é muito?
_ É demais, Rebeca. Um terço da produção de todo o sistema solar está sobrando... onde estarão estas sobras? Não se pode destruir tanto alimento todo ano. Há algo errado, preciso conversar com Tomás, talvez ele saiba algo mais.
Rebeca não compreendia aquele moço, mas enxergava nele as características do pai, inclusive a curiosidade e a vontade de saber mais, afeiçoava-se a ele e começava a entender o significado mais profundo da palavra filho, ela precisara viver mais de cento e cinqüenta anos para começar a entender estas coisas tão antigas, que ela vira apenas em velhas histórias. No fundo, ela gostaria que alguém mais vivesse com ela na casa, estava cansada destes robôs com suas vozes eletrônicas e seus olhos inexpressivos, uma companhia humana seria bem vinda.
_ Você gostaria de vir morar aqui na fazenda comigo?
_ Não seria má idéia, talvez eu possa desenvolver estes estudos também, como fez meu pai aqui.
Os dois conversaram sobre o assunto e decidiram juntos que ele iria morar na fazenda, ocuparia um dos quartos. A distância entre a fazenda e a cidade não era tão grande.
Durante todo o ano que se seguiu, Iosef aprofundou-se nos estudos sobre produção e consumo de alimentos de Marte. Continuou trocando informações com Tomás apesar da dificuldade de comunicação direta.
Rebeca acostumou-se com a idéia de cuidar de um filho, por mais que ele já fosse adulto, conseguiu descobrir que havia um outro tipo de amor, diferente do que sentira por Tomás. Um amor maternal, uma vontade de ter aquele ser sempre por perto, uma dedicação diferente a um homem que não envolvia vida sexual.
Um ano depois e chegaram as novas férias de Iosef, que decidiu retornar a Terra para uma nova visita a Tomás.